Pandemia 19/05/2021 09:00

Pandemia agrava ‘déficit de natureza’ em crianças e adultos: ‘Estamos menos vivos quando nos concentramos nas telas’

Aumento na adoção e compra de animais domésticos, mudança na disposição dos móveis para garantir espaço para o banho de sol dentro de casa e crescimento na venda de plantas e flores.

Aumento na adoção e compra de animais domésticos, mudança na disposição dos móveis para garantir espaço para o banho de sol dentro de casa e crescimento na venda de plantas e flores.

Esses são apenas três indícios de um problema comum enfrentado por muitas pessoas durante a pandemia do coronavírus: a falta de contato com a natureza, provocada principalmente pelo confinamento e isolamento social.

Além dos três movimentos, outro ainda reforça o que o americano Richard Louv convencionou chamar de “déficit de natureza”: o aumento do êxodo urbano. Somente nos três primeiros meses de pandemia, até junho de 2020, em São Paulo, a procura por imóveis nas cidades a mais de 100 quilômetros de distância da capital havia subido 340% na comparação com o trimestre anterior, segundo dados da plataforma ZAP Imóveis.

Muita gente começou a repensar a vida nas grandes cidades, privadas do contato com a natureza, em tempos de trabalho remoto e impossibilidade de acesso aos serviços da metrópole.

“Ironicamente, a pandemia atual, por mais trágica que seja, aumentou o déficit de natureza, mas também fez crescer dramaticamente a consciência pública da profunda necessidade humana de conexão com a natureza”, diz ele.

Autor de diversos livros, entre eles A Última Criança na Natureza – Resgatando nossas crianças do transtorno de déficit de natureza, Louv afirma que a pandemia, ao mesmo tempo que agrava nossa já distante relação com a natureza, fez muitas pessoas perceberem que essa conexão é essencial para uma vida saudável – física e mentalmente.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele afirma que “a pandemia nos incitou a imaginar novas imagens de um futuro em que nossa conexão com a natureza e uns com os outros, como parte da natureza, começa a ressurgir”.

Confira a entrevista:

BBC News Brasil – No livro A Última Criança na Natureza você trata da falta de contato com a natureza e o impacto dessa ausência na vida das crianças, tanto físico quanto psicológico. Durante a pandemia do coronavírus muitos de nós, crianças e adultos, fomos privados da vida perto da natureza, confinados em apartamentos e casas em grandes cidades. Como essa distância e falta de contato com a natureza podem nos afetar?

Richard Louv – Ainda que tenhamos que confiar mais na tecnologia, ao mesmo tempo a pandemia nos lembra que às vezes não sabemos do que precisamos até que esse “algo” desapareça – ou fique inacessível. Muitos de nós ficamos mais conscientes dessa necessidade de conexão com a natureza, e da necessidade de agir.

No meu novo livro, Nosso Chamado Selvagem (em tradução literal), eu escrevo sobre a epidemia da solidão humana. Mesmo antes da pandemia do coronavirus, o isolamento social rivalizava com o tabagismo e a obesidade como um risco para a saúde. O aumento da solidão humana é causado por muitos fatores, mas pode muito bem estar relacionado com a própria solidão da espécie. Nós estamos desesperados, como espécie, a não nos sentirmos sozinhos no universo.

E não estamos, se prestarmos bem atenção.

Ironicamente, a pandemia atual, por mais trágica que seja, aumentou o déficit de natureza, mas também fez crescer dramaticamente a consciência pública da profunda necessidade humana de conexão com a natureza e está contribuindo para um senso ainda maior de urgência ao movimento para conectar crianças, famílias e comunidades à natureza.

Enquanto nos isolávamos em casa, muitos de nós ficamos fascinados com o aparente retorno dos animais selvagens às nossas cidades e bairros. Alguns animais de fato encontraram caminhos até o ambiente urbano.

Mas muitos deles já estavam lá, escondidos da vista de todos. Durante os períodos de “lockdown” retomaram os hábitos naturais. Quando o ar e água ficaram mais claros e limpos, nós vimos não apenas o que estávamos perdendo, mas também do que esperávamos ver: o vislumbre de um mundo com a natureza restaurada.

Então, precisamos nos perguntar: Como será o mundo pós pandêmico? Estamos de fato nos preparando para potencializar os benefícios e reduzir os riscos da conexão entre humanos e o resto da natureza? O que será preciso para mover nossa espécie a agir contra os desequilíbrios climáticos, o colapso da biodiversidade, a ameaça de extinções em massa, e pandemias relacionadas à forma como tratamos os animais?

BBC News Brasil – Você fala da necessidade de termos “vitamina N”, de natureza. Como a pandemia afeta nosso corpo e mente com a falta dela?

Louv – A criança sedentária e confinada dentro de casa era figura comum mesmo antes da pandemia do coronavírus – não apenas em bairros urbanos e suburbanos, mas também em áreas rurais, apesar de a natureza estar logo ali, da porta para fora, nesses locais.

E isso gera muitos problemas: como os jovens passam cada vez menos tempo de suas vidas em ambientes naturais, os sentidos se estreitam, fisiológica e psicologicamente.

Somado a isso, a infância superorganizada e a desvalorização das brincadeiras espontâneas, sem regras, têm enormes implicações para a capacidade de autorregulação das crianças. Isso reduz a riqueza da experiência humana e contribui para uma condição que chamo de “transtorno de déficit da natureza”.

Criei esse termo como bordão para descrever o que muitos de nós acreditamos ser os custos humanos de viver alienado da natureza. Entre esses custos estão a redução do uso dos sentidos, dificuldades de atenção, taxas mais altas de doenças físicas e emocionais, uma taxa crescente de miopia, obesidade infantil e adulta, deficiência de vitamina D e outras doenças.

A ciência correlacionou experiências no mundo natural com melhorias em cada uma delas.

Obviamente, o transtorno de déficit de natureza não é um diagnóstico médico, embora se possa pensar nele como uma condição da sociedade. Você sabe do que se trata assim que alguém menciona o assunto, e isso pode explicar a facilidade com a qual o termo foi traduzido e incorporado a tantos idiomas ao redor do mundo.

Hoje há muitas pesquisas, mais de mil estudos – um aumento significativo se comparado aos 60 que eu cito no livro A Última Criança na Natureza, lançado em 2005 – sobre essa desconexão e os benefícios da retomada do contato com a natureza para as funções cognitivas de crianças e adultos, para a saúde física e mental e para o bem estar social.

Muitos deles estão disponíveis (em inglês) na biblioteca digital da minha organização, a Children and Nature.

Eu sugeri o termo “vitamina N”, de natureza, como um antídoto ao déficit de natureza, uma metáfora para a cura. (…) A consciência sobre isso cresceu muito, mas precisamos virar a chave para começar a agir rapidamente, pois estamos em um ponto crítico.

BBC News Brasil – Mas o que pode ser feito para reduzir o impacto da falta de contato com a natureza durante os períodos de confinamento e isolamento social?

Louv – No curto prazo, os esforços para mostrar a famílias, escolas e comunidades como se conectar com a natureza próxima são crescentes. Há muitas organizações internacionais e campanhas para que isso seja feito, mas cada um pode tentar coisas muito simples e muitos já estão fazendo: veja quantas pessoas trouxeram mais plantas para dentro de casa, quantas adotaram animais ou mesmo tentaram manter uma relação com os animais do entorno – pássaros, por exemplo, por algum momento? Nós estamos sedentos dessa relação com a natureza.

Em um artigo recente dou algumas dicas simples de como tentar fazer essa aproximação, ainda que durante o isolamento. Para quem tem quintal, sugiro ter um espaço com um pouco de terra para as crianças brincarem. Pesquisas sugerem que as crianças fortalecem seu sistema imunológico brincando na terra – e enfraquecem esses sistemas evitando-a.

Trazer plantas para dentro de casa e se não for possível, trazer sementes e plantá-las pode ser uma alternativa. Ensine suas crianças sobre a natureza de alguma forma, nem que seja pela janela de casa, observando o céu, ou contando suas próprias aventuras com animais, nem que seja de estimação. Atice a curiosidade delas. Se puder, faça exercícios e caminhadas ao ar livre.

E especialmente para quem tem filhos pequenos: o tédio é subestimado. E às vezes, a esperança também. Quando a escola fecha devido ao mau tempo ou a um vírus, o tédio pode levar à criatividade. Especialmente durante o verão, os pais ouvem a reclamação lamentando:

“Estou entediado.” O tédio é o primo enfadonho do medo. Passivo, cheio de desculpas, ele pode afastar as crianças da natureza – ou levá-las a ela. Muitos de nós nos lembramos de como as atividades cuidadosamente planejadas empalidecem em comparação com as experiências mais espontâneas, e que o tédio muitas vezes nos levou a criar nossas próprias histórias, que contamos até hoje. Compartilhar essas histórias é ainda mais importante em tempos difíceis.

https://www.bbc.com/portuguese/geral-57065482

Deu em BBC

Ricardo Rosado de Holanda


Descrição Jornalista