O Jó mais famoso que já passeou pela Terra é um personagem central do Livro de Jó, que integra o Antigo Testamento da Bíblia. Como conta a história cristã, Jó é um personagem riquíssimo:
“Ele possuía sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas. Tinha também muitos servos a seu serviço. Era o homem mais rico entre todos os habitantes do Oriente de sua época”.
Os servos que esse trecho da Bíblia cita são, sim, escravos. Ainda que Jó enxergue a si mesmo, em algum nível, como um igual a eles: “Se neguei justiça / aos meus servos e servas / quando reclamaram contra mim / que farei quando Deus / me confrontar? / Que responderei quando chamado / a prestar contas? / Aquele que me fez no ventre materno / não os fez também?”.
Na história, Deus e o diabo conversam entre si sobre Jó, e Satã afirma que o humano apenas é fiel porque é cercado de riquezas — se elas fossem retiradas, ele não seria tão temente a Deus.
O todo poderoso então autoriza o diabo a destituir Jó de suas riquezas e a matar seus serventes e sua família. Jó inicialmente se mantém crente, mas, após uma série de punições, acaba reclamando contra Deus.
No fim da história, porém, Jó se arrepende após Deus se apresentar perante ele. Sua família e suas riquezas são restauradas (os serventes não são mencionados). O tema da história é a justiça divina e como o sofrimento de uma pessoa virtuosa não significa que Deus é malevolente.
Só tem um ponto: o Jó da Bíblia muito provavelmente não tem nada a ver com a cantiga brasileira.
Os verdadeiros escravos de Jó
A pesquisadora Yeda Pessoa de Castro é autora de uma das obras mais importantes sobre línguas africanas no Brasil: Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Segundo ela, a leitura mais provavelmente correta da canção é “escravos de njó”, sendo que “njó” vem do quimbundo (língua bantu falada em Angola) e significa “da casa, doméstico”.
Os escravos de njó, portanto, seriam nada mais que pessoas escravizadas durante o Brasil colonial. E o caxangá? Para Yeda, seria um jogo de tabuleiro.
Mas há outras possíveis interpretações para “caxangá”. É possível que a palavra tenha origem na língua Tupi, vinda de “caa-çanáb”, que significa mata estendida, ou ainda de “caa-çang-guá”, que é mato do vale dilatado, ou ainda então de “caa-ciangá”, que é mata da madrinha.
Caxangá, inclusive, é o nome de um bairro em Recife, o nome de um tipo de chapéu redondo usado por marinheiros e o nome de um crustáceo, o siri-caxangá (C. larvatus).
“Caxangá” é também uma música de autoria de Fernando Brant e Milton Nascimento, que fala sobre os sonhos de um homem que vive em função do trabalho e desabafa em uma roda de amigos. “Eu vivo de brigar contra o rei / Em volta do fogo todo mundo abrindo o jogo / Conta o que tem pra contar / Casos e desejos, coisas dessa vida e da outra / Mas nada de assustar”.
Com isso, sobra o “zigue-zigue-zá”. De acordo com o livro Memória das palavras Afrobrasileiras, publicado pelo Governo Federal em 2024 em parceria com a Fundação Cultural Palmares e a Universidade Federal do Paraná, a cantiga Escravos de Jó seria uma “versão colonizada” de Guerreiros Nagô, uma música cantada por africanos escravizados.
Diz o livro, como você pode ler aqui: “A origem da música de tradição popular ‘Escravos de Jó’, segundo a comunidade quilombola do Rio de Janeiro, é a versão colonizada de ‘Guerreiros Nagô’.
Esta última era cantada por africanos escravizados, após um duro dia de trabalho. Eles cantavam e dançavam essa música que servia de estratégia Nagô de fuga. Alguns eram escolhidos pelo grupo a fugirem para os quilombos, e o trecho ‘fazem zigue-zique-zá’ representava o momento de saírem correndo em ziguezique-zá para escapar e confundir o capitão do mato durante a fuga. A versão atual da música, conhecida popularmente ainda hoje como ‘Escravos de Jó’, foi uma forma de domínio dos senhores de engenho sobre os negros, que deveriam cantá-la sentados e passar algum objeto (que talvez fosse uma semente)”.
Juntando tudo isso, uma interpretação possível é que os “escravos de Jó” seriam pessoas escravizadas que cantavam essa música, ou jogavam um jogo relacionado, em preparação para tentativas de fuga, escapando para o mato (caxangá) de forma organizada, em zigue-zague.
A verdade está em algum lugar aí no meio. Para a pesquisadora Ana Paula Gomes do Nascimento, a interpretação da canção “hoje é praticamente impossível, pois as referências se perderam no tempo”.