Como as Big Techs têm assumido protagonismo militar, segundo sociólogo - Fatorrrh - Ricardo Rosado de Holanda
FatorRRHFatorRRH — por Ricardo Rosado

Guerras 27/11/2025 11:44

Como as Big Techs têm assumido protagonismo militar, segundo sociólogo

Como as Big Techs têm assumido protagonismo militar, segundo sociólogo

Na obra, o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC, em São Paulo, investiga como companhias como Google, Amazon, Palantir e Microsoft se tornaram peças-chave da infraestrutura bélica global.

Com base em documentos, contratos públicos e estudos acadêmicos, ele mostra como a concentração de dados, algoritmos e capacidade computacional na mão de poucas empresas está remodelando as disputas geopolíticas e os conflitos armados do século 21.

“Não deveríamos aceitar o uso de dados de empresas de entretenimento e interação social para fins militares”, alerta Amadeu. “Meu temor é que o que aconteceu em Gaza seja replicado em outras situações.”

A seguir, o autor analisa a virada geopolítica do Vale do Silício, os riscos da dependência brasileira de serviços de nuvem estrangeiros, os impactos sociais da vigilância algorítmica e a urgência de se criar instrumentos para frear o uso militar de tecnologias civis.

No livro, você argumenta que as Big Techs são “infra- estruturas de poder”, e não apenas empresas privadas. O que isso significa na prática?

Significa que elas passaram a atuar também na defesa de interesses políticos e estatais. Não apenas protegem seus interesses comerciais, mas interferem na condução de parlamentos, na formação da opinião pública e, mais recentemente, se alinharam a perspectivas geopolíticas, como a de Donald Trump.

Empresas como Amazon e Google, que antes não tinham tanto protagonismo político, agora assumem contratos públicos e bilionários ligados à defesa, como por exemplo o projeto de nuvem militar em Israel. O que explica essa mudança?

Elas sempre foram aliadas do Estado norte-americano, porque elas dependem disso para forçar determinadas ações de outros países que as favorecem comercialmente. Portanto, isso não é uma grande novidade. De fato, elas eram muito discretas e se colocavam como neutras. Agora não. Logo no início do ano, quando Trump assume, Mark Zuckerberg faz uma declaração, inclusive citando o Judiciário brasileiro, dizendo que ele sempre esteve incomodado com aquilo. Por causa da postura do atual governo americano, foi exigida uma fidelidade e um posicionamento agressivo por parte dessas empresas que, de pronto, se assumiram trumpistas. E Trump representa uma linha que está alinhada a grupos políticos norte-americanos. Eu não concordo em chamá-lo de um aventureiro. Você o vê executando um tipo de política que não esconde determinadas posições antes mascaradas num discurso mais cuidadoso, mais nebuloso. E os CEOs dessas empresas são muito aderentes a essa linha da direita alternativa americana. Eles comungam esses valores. O Vale do Silício não é democrata, o Vale do Silício hoje é da extrema direita americana.

O que o modelo de negócios das Big Techs revela sobre o estágio atual do capitalismo?

Ele revela que o capitalismo está cada vez mais baseado em tecnologias digitais e, em especial, tecnologias baseadas em dados. E os Estados Unidos controlam as principais empresas que desenvolvem essas tecnologias – não todas, mas as principais. Ele [Trump] resolveu fazer disso uma ação de retomada do poder unipolar. Só que tem um problema: nunca o capitalismo concentrou tanta renda e tanto poder econômico. Essas empresas são altamente concentradoras, mas o mundo está reagindo, porque essa concentração não está beneficiando as sociedades. O que representa vantagens para os Estados Unidos, nitidamente desequilibra e prejudica outros tantos países. Esses países estão reagindo, percebendo que eles têm que encontrar seu caminho econômico, dominar mais as tecnologias, adquirir mais independência, e isso está gerando uma instabilidade mundial muito grande. A ponto de os EUA aprovarem no parlamento uma medida para obrigar a empresa do TikTok a vender a rede para uma empresa americana. Se isso fosse no Brasil, estaríamos falando em autoritarismo. Mas lá eles dizem que têm que se proteger tecnologicamente dos concorrentes. As ordens executivas relacionadas à inteligência artificial são bastante evidentes em dizer que nós temos que moldar o mundo aos interesses norte-americanos, e proteger as empresas americanas contra a concorrência para manter a liderança dos Estados Unidos.

Que papel o Estado ainda pode exercer num cenário em que dados e algoritmos moldam a economia e a política global?

A Europa, por exemplo, está reagindo há algum tempo, ela tentou regular as Big Techs, impor regras, tentar garantir o espaço europeu a partir das condutas dessas empresas para que elas não matem a concorrência, para que elas respeitem os direitos considerados importantes na Europa, para que elas tenham que pagar tributos. E perceberam que só regular não ganha o jogo. Então, começaram a avançar com outros tipos de medidas, como políticas tecnológicas próprias. Começou uma luta pela localização de dados na Europa. Aí, as Big Techs reagiram, criando um produto que se chama nuvem soberana. Já que não tinham como evitar que o clamor pela soberania digital avançasse na Europa, fizeram a soberania digital ser executada com elas, as Big Techs americanas. Mas os europeus estão reagindo a isso também, porque não basta localizar os dados, eles têm que estar sob controle de capital europeu. O lance mais recente dessa disputa foi há poucos meses, quando o Senado francês chamou os dirigentes da Microsoft e perguntou se o Trump teria condição de copiar ou bloquear dados das máquinas da Microsoft na Europa. E o diretor da Microsoft disse que sim, por causa da lei norte-americana Cloud Act e outras legislações que expandem a jurisprudência dos EUA para todo mundo.

Em que momento as plataformas digitais ultrapassaram o campo civil e passaram a ocupar o coração do complexo industrial-militar?

Há algum tempo estou estudando os data centers, e a empresa que tem o maior número de contratos e de dados armazenados é a Amazon. Quando descobri um contrato assinado por uma “diretora de Defesa” da Amazon, fiquei chocado, porque o termo “defesa” está ligado ao Estado, à questão militar. Assim, entrei no universo de contratos militares com as Big Techs. Esses contratos são antigos e não são coisas pequenas. Eles começam com uma tentativa de construção de um projeto mais importante de visão computacional, de análise, de aplicação de aprendizado de máquina em dados obtidos por drones, mais ou menos em 2017 e 2018. Aí, vão avançando sob a doutrina neoliberal que manda que o Estado não construa estruturas, que essas estruturas têm que ser do mercado. Ao mesmo tempo, estão cada vez mais alocando recursos em defesa por causa da instabilidade geopolítica internacional. E as tecnologias mais imprescindíveis para a ação militar são os sistemas automatizados com aprendizado de máquina e redes neurais. Eles querem replicar dentro das forças armadas americanas a estrutura para um grande modelo para fazer treinamento de inteligência artificial. Por isso, as Big Techs passam a integrar o complexo militar-industrial, mas não como uma empresa de armas, e sim com um serviço de IA, uma mega estrutura, na verdade.

O caso recente dos conflitos em Gaza é um exemplo dessa nova fase tecnológica da guerra. De que forma a inteligência artificial, os dados e a infraestrutura digital deram novos capítulos a um conflito histórico?

Recentemente, a Microsoft ganhou o que os publicitários chamam de mídia espontânea ao reconhecer que o jornal The Guardian tinha acertado ao dizer que a nuvem deles foi utilizada para espionagem de palestinos na Cisjordânia e Faixa de Gaza. E eu fico feliz em saber que isso incomodou a Microsoft a ponto de tentarem se dissociar de um genocídio. Ao mesmo tempo, é algo muito cínico, porque os trabalhadores já tinham denunciado o uso de sistemas de IA nas guerras. O fato é que provavelmente esses estrategistas da guerra digital, da guerra baseada em dados, usaram a faixa de Gaza como laboratório. Eles localizam o alvo no território, e aí drones e mísseis atingem essa pessoa fora da área de combate. Então, não seria exagero falar que a inteligência artificial, os dados e a infraestrutura digital deram um novo capítulo a esse conflito, que já é histórico. Não deveríamos aceitar o uso de dados de empresas de entretenimento, de interação, de relacionamento social para fins militares, assim como existem tratados de não utilização de armas químicas. O meu temor é que o que aconteceu em Gaza seja replicado em outras situações.

Que aprendizados de revoluções tecnológicas anteriores, apropriadas pelo campo bélico, continuam sendo ignorados por governos e empresas?

A minha impressão é que o que está acontecendo agora é uma certa inversão. Vários inventos criados durante os períodos de guerra caminhavam para a área civil. Agora, como as grandes empresas que criam soluções inovadoras não estão mais dentro do processo militar, o que está acontecendo é que essas Big Techs criam soluções civis que são usadas para fins militares. É uma inversão. De 2014 para cá, os modelos mais significativos, mais complexos, mais avançados de aprendizado de máquina são desenvolvidos não mais em parceria com ou dentro de universidades, mas nas Big Techs. Isso significa que eles estão no comando da ciência. Isso muda a estrutura de poder, tanto que Trump percebeu e as colocou na linha de frente do poder americano.

Quais as consequências sociais e culturais quando nossas formas de comunicação e trabalho passam a depender dessas mesmas empresas?

É assustador termos uma única empresa mediando a relação de 3 bilhões de pessoas no mundo. Isso nunca existiu. Ela tem um poder descomunal. Não apenas de vender um produto, mas de formar consciências, subjetividades e opiniões. E é ainda mais preocupante quando essa empresa, que já usa técnicas algorítmicas e inteligência artificial para traçar perfis e mapear interesses, passa a empregar esses dados para fins militares. Essa é a novidade: as Big Techs participaram de ações extremamente violentas que resultaram na morte de civis na Palestina. Fico triste ao ver as imagens da Faixa de Gaza, mas isso está acontecendo e há toda uma infraestrutura tecnológica por trás. Por isso, precisamos estar atentos e vigilantes para denunciar esse processo.

Sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira — Foto: TV PUC/Reprodução
Sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira — Foto: TV PUC/Reprodução

Sérgio Amadeu é Sociólogo, doutor em Ciência Política pela USP e professor associado da UFABC. Estuda os impactos das novas tecnologias nos processos políticos e é autor do livro recém- lançado “As Big Techs e a Guerra Total – o Complexo Militar-Industrial- Dataficado”.

Deu em Galileu
Ricardo Rosado de Holanda
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