Religião 02/07/2025 15:03

Por que o Brasil caminha para se tornar um país de maioria evangélica, segundo especialista

O conclave que elegeu o novo papa Leão XIV colocou novamente a Igreja Católica nas manchetes e reacendeu a discussão sobre o futuro da fé cristã no Brasil.

Apesar de o país ainda ser, em números absolutos, o maior reduto católico do mundo – com mais de 180 milhões de fiéis, segundo o Anuário Pontifício –, essa hegemonia pode terminar na próxima década.

Divulgada em 2020, uma pesquisa do DataFolha apontou que os evangélicos devem ultrapassar os católicos por volta de 2032, marcando uma virada histórica no panorama religioso brasileiro.

Embora possa soar homogêneo, o termo “evangélico” abrange um campo profundamente diverso dentro do cristianismo.

São igrejas que têm origem na Reforma Protestante do século 16, iniciada por figuras como Martinho Lutero, que se ramificaram ao longo dos séculos em vertentes como a Batista, Presbiteriana, Luterana, Metodista, Adventista e, mais recentemente, nas correntes pentecostais e neopentecostais.

Apesar das diferenças doutrinárias, compartilham uma base comum: a centralidade da Bíblia, a conversão pessoal como experiência-chave e uma ênfase na vivência comunitária da fé.

No Brasil, a expansão das igrejas evangélicas está ligada a um processo de urbanização acelerada e desigual, especialmente a partir da segunda metade do século 20.

Quem faz essa leitura é o antropólogo Juliano Spyer, autor de Crentes: pequeno manual sobre um grande fenômeno (Editora Record, 2025) e Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial, 2020).

“É difícil ver um aspecto da vida em que a Igreja não ocupe o espaço deixado pelo Estado”, diz. Essa presença se estende também para a política: cerca de 70 milhões de eleitores brasileiros se identificam como evangélicos, ajudando a eleger representantes que compartilham das mesmas pautas – muitas delas com viés conservador.

A seguir, Spyer analisa o crescimento dessa fé no Brasil contemporâneo, além dos dilemas do Estado laico, o conservadorismo nos costumes, as contradições internas e os preconceitos que ainda cercam o debate. “As elites culturais precisam aprender a dialogar com essas pessoas de maneira respeitosa”, alerta.

“Elas não escolhem a religião porque são ignorantes, mas porque encontram sentido, proteção e um projeto de vida melhor.”

Doutor em antropologia pela University College London (UCL), Juliano Spyer é autor dos livros 'Crentes' e 'Povo de Deus' — Foto: Divulgação
Doutor em antropologia pela University College London (UCL), Juliano Spyer é autor dos livros ‘Crentes’ e ‘Povo de Deus’ — Foto: Divulgação

Muita gente usa o termo “evangélico” como se fosse algo homogêneo, mas o campo é diverso, e em constante transformação. Quando a gente fala em “povo evangélico”, do que estamos falando?

A gente está falando, primeiro, de uma tradição cristã profundamente diversa. Que tem na diversidade sua grande marca. Mas que, ao mesmo tempo, tem como ligação uma perspectiva que, em relação à classe média e alta intelectualizada, é mais conservadora no campo dos costumes.

O número de evangélicos no Brasil não para de crescer, e isso vem mexendo com estruturas sociais, políticas e culturais. O que está por trás da ascensão evangélica no país nas últimas décadas?

Eu acho que o ponto de partida para esse crescimento é a urbanização bastante acelerada que acontece no Brasil a partir da segunda metade do século 20, provocada por um fenômeno climático extremo que leva cerca de 20 milhões de pessoas, principalmente trabalhadores do campo, a se mudarem muito rapidamente para grandes cidades, especialmente no sul e sudeste, e habitar dentro dessas cidades espaços muito distantes, e que não têm disponível muitos dos serviços do Estado. Também não têm disponível serviços religiosos, porque a Igreja Católica não cresce com essa rapidez. Esse é um ambiente muito propício para a criação – ou a emergência – dessas organizações cristãs que se desenvolvem a partir do catolicismo que já está dado para a população brasileira, mas que oferecem esses serviços de forma mais dinâmica. Elas também se tornam a casa em que essas pessoas se relacionam umas com as outras e viram redes de solidariedade que ajudam a compensar os problemas que esse crescimento urbano acelerado cria.

Existe relação entre o aumento de evangélicos e a queda no número de católicos? Ou são fenômenos distintos?

Certamente. Se um grupo cresce, enquanto o outro diminui, considerando que não estão entrando pessoas novas, certamente há uma transição ou migração de uma tradição para outra. Inclusive pela falta de disponibilidade de serviços da Igreja Católica em bairros periféricos, porque demora muito tempo para treinar um padre e construir uma igreja. É caro e lento. Então, certamente existe esse trânsito, ao mesmo tempo em que esse trânsito é mais complexo do que sair de um e ir para outro. Às vezes passa por sair de um, ir para o espiritismo, para a umbanda, para uma igreja evangélica e depois para outra. Ou até mesmo deixar de ter qualquer contato com a religião organizada. Esse trânsito não é linear e imediato; é mais complexo e diverso.

Com o tempo, a cultura evangélica brasileira criou uma forma própria de comunicar e se expressar. Ao mesmo tempo, sabemos que existem diferentes igrejas e denominações. Faz sentido falar em uma única linguagem evangélica no Brasil?

O dialeto, a linguagem em comum, é a da Bíblia. Pensar o mundo a partir desse conjunto de histórias que trazem valores, visões de mundo e regras de convivência. A gente vê grupos evangélicos que não se encontram, porque não estão muitas vezes na mesma denominação. Mas quando eles vão a eventos gospel, escutam música gospel e conversam com outros evangélicos a partir desse espaço comum, aí sim eles se encontram – nos festivais, acampamentos e eventos. A música é mais um ponto de encontro do que uma forma de se comunicar.

Essa linguagem é a mesma dos católicos?

Não exatamente, inclusive porque a Bíblia católica é diferente da protestante. Mas podemos pensar em um panorama em que existe diálogo entre as tradições. O movimento carismático no mundo católico, por exemplo, que se apresenta a partir da música e de liturgias novas que vêm do protestantismo, estamos falando de um espaço que se mistura, se confunde e se encontra. Então, pensando nesse campo do cristianismo conservador, em que a música gospel e a música religiosa em geral são compartilhadas, estamos falando de grupos que dialogam a partir também de referências bíblicas.

Você costuma dizer que as igrejas preenchem espaços que o Estado abandonou, principalmente nas periferias. Que tipos de lacunas deixadas pelo Estado as igrejas evangélicas se propõem a preencher?

Basicamente todas. É difícil ver um espaço que a igreja não ocupa. Por exemplo, escola, a igreja ocupa como um espaço que acolhe crianças e adolescentes no contraturno para oferta de serviços como cursos de dança, línguas, luta, retórica, leitura, reforço escolar… A igreja como um lugar de convivência, em que as pessoas aprendem como atuar dentro de uma organização estabelecida formal. A igreja como um espaço de oferta de serviços como cesta básica e banco de empregos. No limite, a igreja como um espaço de segurança, porque um evangélico, se vestindo como tal, sendo identificado dessa forma pela polícia e pelo crime, está menos exposto à violência. É difícil pensar em um aspecto da vida em que a igreja de certa forma não funcione para suprir o que falta ou blindar a pessoa de um contexto mais violento.

E que efeitos essa atuação tem trazido para quem vive à margem das políticas públicas?

Essa é a pergunta a que um intelectual de esquerda responderia “nenhum”. Que a pessoa só está perdendo, porque está entregando o dinheiro dela e votando nos candidatos a mando do pastor. O que a literatura sociológica mostra é que a igreja oferece uma melhora na qualidade de vida. As pessoas se alimentam melhor, evoluem do ponto de vista do trabalho, ficam mais tranquilas em relação à segurança dos entes queridos. A pessoa está ali porque melhora de vida.

Como você vê a relação entre a expansão evangélica e o fortalecimento de pautas conservadoras na esfera política?

Talvez os evangélicos não sejam mais conservadores do que o contexto católico de onde eles emergem. Quando falamos, por exemplo, de pessoas refratárias à ideia de mudar a legislação do aborto, não estamos falando nada de novo em relação ao que os católicos praticantes conservadores pensam. Então, não estamos falando necessariamente de evangélicos ou católicos conservadores, mas de valores cristãos conservadores. O evangélico, como qualquer outro cidadão, tem o direito de se representar e representar os seus valores pelo exercício da cidadania. Inclusive a partir do voto. A pessoa não pode ser privada ou a gente não pode achar que ela não deve participar porque ela tem valores diferentes dos nossos. Agora, a Igreja ou algumas organizações tensionam essa relação. Por exemplo, quando a Igreja, que é um espaço místico – em que as pessoas chegam com uma abertura diferente da que elas têm em outros espaços – se torna ou se abre para esse tipo de mensagem política. Ou seja, quando o pastor põe a mão na cabeça do candidato e diz que ele está sendo abençoado por Deus, isso não deve e não deveria acontecer. Ou quando a Igreja instrumentaliza o Estado para impor valores que não são de todos, inclusive valores religiosos. Então, o Estado se torna um instrumento da evangelização. Essas duas coisas são certamente equivocadas, inclusive porque elas ferem a liberdade religiosa – que foi talvez a principal bandeira do movimento protestante evangélico ao longo dos séculos. A liberdade de culto, a liberdade de escolher qual religião você tem.

Enquanto instituições como partidos, sindicatos e até universidades vêm perdendo credibilidade, as igrejas mantiveram e até ampliaram sua influência. O que esse contraste diz sobre a forma como os brasileiros buscam sentido, pertencimento e orientação hoje?

Acho que é equivocado o dado de que as igrejas ganham credibilidade. Na verdade, esse envolvimento recente, nos últimos dez anos, da Igreja com a política tem fraturado a maneira como pessoas não religiosas veem as igrejas, e também fraturado a confiança de que pessoas dessas igrejas têm nas suas instituições. Isso tem levado ao crescimento do grupo chamado “sem religião” – e, no caso evangélico, ao crescimento do número de pessoas que se identificam como evangélicos não praticantes, algo que não existia há 20 anos. Mas por que as igrejas continuam crescendo a despeito disso? Porque elas oferecem acolhimento e mudanças de vida que são bem-vindas. Dentro de um contexto em que o dinheiro é visto como algo feio, poluído, e que o pobre tem que aguentar ser pobre pro resto da vida para que entre no céu depois que morrer, a religião protestante diz que você vai ser um cristão melhor se você viver melhor essa vida, se seu filho estiver numa escola melhor, se você tiver um plano de saúde, acesso à segurança. E essas pessoas estão buscando, na vida espiritual e em outros âmbitos, vidas mais seguras e felizes, espiritualmente e em outros sentidos.

De que formas o universo evangélico tem moldado o Brasil contemporâneo e o que isso revela sobre quem nós somos hoje como sociedade?

Primeiro, na política, por essa guinada conservadora, que não necessariamente está aliada da extrema-direita – eu diria que, da mesma forma que na sociedade brasileira existe esses 10%, 20% radicalizados de cada lado, na igreja evangélica há uma fração radicalizada e um outro grupo que vem se tornando mais conservador nos costumes. Nas duas últimas eleições presidenciais, o campo evangélico – cerca de 70 milhões de brasileiros – votou preodminantemente pelo candidato que é de direita, inclusive identificado com a extrema-direita. E, do outro lado, esse mesmo conservadorismo serve de motivação para o desenvolvimento e a oferta de serviços e produtos que atendem a esse grupo: roupas, cosméticos, educação, entretenimento e publicidade. Vemos a presença cada vez mais evidente de produtos no entretenimento, como a série The Chosen, e muitos outros conteúdos novos que são feitos tendo em vista esse grupo. Vemos produtos e serviços de educação sendo valorizados, como escolas adventistas e universidades que têm a preocupação com o tema dos valores cristãos. Vemos organizações e empresas que antes surfavam nas pautas consideradas progressistas demais para essas pessoas hoje buscando a interlocução que perderam com esses grupos.

Como a vivência evangélica transforma a forma de lidar com temas como saúde e educação?

Do ponto de vista da saúde, à medida em que vemos pessoas mais escolarizadas, e isso repercutindo no rendimento delas, vemos que elas têm mais acesso a serviços de saúde. Nunca vi um evangélico comum – não estamos falando de grupos mais radicais, como as Testemunhas de Jeová, que não aceitam transplante de órgão ou receber sangue de outras pessoas – não querer ter mais acesso a serviços de melhor qualidade. Em termos de educação, a mesma coisa. Por exemplo, o evangélico lê em média mais do que o brasileiro. Isso se traduz, no caso dos mais pobres, em famílias que estimulam mais que seus filhos estudem e tenham diploma universitário, o que é visto como uma grande conquista. Ao mesmo tempo, o ambiente universitário, principalmente de universidades públicas, é visto como um espaço que afeta de uma forma negativa do ponto de vista de cultura, de hábitos, de costumes e de visão de mundo e que distancia esses jovens da prática religiosa.

Qual sua análise sobre o aumento no número de evangélicos no Brasil?

Enxergo como qualquer fenômeno social. Um fenômeno que até esse momento é visto de uma forma profundamente preconceituosa pelas elites culturais que acham que religião é algo que merece ser estudado porque faz parte da experiência humana. Ou por elites intelectuais que acham que a igreja é uma forma de manipular e controlar as pessoas. O que acho é que hoje estamos tendo mais condições de olhar para os problemas, mas também para como essas pessoas são inteligentes e que, ao escolherem a religião, não o fazem porque não foram à escola, são pobrezinhas e coitadas, mas porque essas igrejas, de alguma forma, melhoram a vida delas.

O que ainda te surpreende quando o assunto são evangélicos no Brasil?

Surpreende-me o quanto a elite intelectualizada é reativa em relação a isso. O quanto é difícil, por exemplo, depois de duas campanhas presidenciais, essas pessoas entenderem racionalmente que elas precisam dialogar de uma forma inteligente e respeitosa. Elas continuam dizendo que o meu livro, Povo de Deus, é um livro que todo mundo deveria ler e, no entanto, têm dificuldade de dialogar. Como o pastor Henrique Vieira [deputado federal do Partido Socialismo e Liberdade pelo Rio de Janeiro] disse, quando a esquerda joga fora o idioma da família (porque parece que promove o patriarcado), o idioma do amor (porque parece brega) e o idioma da vida (porque parece contra o aborto), ela joga fora uma janela para se comunicar com esses 70, 80 milhões de brasileiros. Me surpreende o quão irracional parece que a racionalidade é.

Os evangélicos estão abertos a esse diálogo?

Nas duas últimas eleições, apesar de toda a pressão de líderes religiosos, 30% ainda votaram em outros candidatos. A questão não é estar aberto – é demonstrar interesse em tratar essas pessoas com respeito. Tentar entender como elas veem o mundo. O que dizem os antropólogos há cem anos: aprender a olhar a vida a partir da perspectiva dos outros, em vez de você achar que é melhor que elas e que suas verdades valem para elas.

Deu em Galileu
Ricardo Rosado de Holanda


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