Arqueologia 23/06/2025 15:02
Os tesouros surpreendentes que arqueólogos encontraram após o incêndio de Notre-Dame
Em abril de 2019, a Catedral de Notre-Dame foi acometida por um incêndio devastador. Foi necessário quase três anos para os escombros serem removidos e para que as paredes de pedras e abóbadas do teto danificados fossem reforçadas.
Só assim, em fevereiro de 2022, começaram as obras para sua reconstrução. Notre-Dame só foi reaberta em 2024, conforme pedido do presidente Emmanuel Macron, que tratou com urgência a necessidade de reconstruir o que havia sido perdido. Tudo começava pela emblemática torre de madeira que se ergue acima do centro da igreja.
Mas antes de tudo, os arqueólogos tiveram que ser acionados. Afinal, a lei francesa adverte que qualquer projeto de construção que perturbe o solo onde artefatos ou vestígios antigos possam ser encontrados exige a intervenção de arqueólogos do governo.
No caso de Notre-Dame, eles precisavam garantir que nada de valor fosse esmagado pelas 770 toneladas de andaimes que teriam que ser erguidos para reconstruir a torre.
Desta forma, Christophe Besnier e sua equipe do Instituto Nacional de Pesquisa Arqueológica Preventiva (INRAP) tiveram inicialmente apenas cinco semanas para escavar sob o piso de pedra no cruzamento, onde o transepto (os braços curtos da igreja cruciforme) encontra a nave e o coro.
Em Notre-Dame é normal encontrar artefatos históricos quando se escava fundo o suficiente, visto que o local havia sido ocupado por mais de mil anos antes da construção da catedral — entre os séculos 12 e 13.
Mas como a equipe de Besnier estava autorizada a cavar apenas 40 centímetros de profundidade, ele não esperava encontrar muita coisa no solo. Felizmente, ele estava errado quanto a isso.
“Os destroços revelaram-se muito mais ricos do que o esperado”, disse ele, recorda o National Geographic. Ao todo, sua equipe encontrou 1.035 fragmentos de inúmeras obras de arte. “É muito impressionante.”
Por lá, os arqueólogos descobriram obras de arte magníficas que, inicialmente, ficavam no centro da catedral — o que o crítico francês Didier Rykner chamou de “algumas das obras de escultura mais excepcionais de qualquer período do mundo”.
Assim que a equipe removeu o ladrilho do piso, se depararam com uma fina camada de terra e entulho. Eis que a parte superior de um caixão de chumbo apareceu. Perto de lá, esculturas de calcário começaram a emergir: cabeças e torsos em tamanho real, perfeitamente alinhados logo abaixo do piso, ao longo da entrada do coro.
Os arqueólogos tiveram permissão para cavar mais 40 centímetros, com o intuito de extrair os artefatos. A escavação, que deveria durar cinco semanas, teve que se estender por mais de dois meses. Afinal, outro caixão de chumbo apareceu, assim como alguns sepultamentos menos luxuosos — o que não é de se surpreender, visto que há túmulos por toda a catedral. As estátuas acabaram sendo a descoberta mais significativa.
Segundo estimativa feita pelos arqueólogos, as estátuas eram remanescentes do “biombo” de calcário do século 13, que originalmente fechava o coro e o santuário de Notre Dame da vista do público.
O biombo de 4 metros de altura havia sido desmontado no século 18 e havia praticamente desaparecido. Sobraram apenas poucos fragmentos e nenhuma representação completa dele, nem qualquer registro de seu destino.
Agora, depois de encontrado, ele nos dá uma lembrança vívida de quão diferente era a experiência de visitar Notre-Dame na Idade Média, quando a catedral foi construída.
O biombo do coro era uma obra-prima da escultura gótica pintada. Conforme repercute o NatGeo, entre as figuras em tamanho real que a equipe de arqueólogos escavou, a que mais se destaca é uma cabeça e o torso de uma figura que representa Cristo — com os olhos fechados e sangue vermelho escorrendo da ferida de lança em seu flanco.
A escultura é realmente excepcional em sua delicadeza, em sua atenção aos detalhes”, declarou Besnier. “A representação das pálpebras, das orelhas, do nariz — é incrível.”
Quem hoje visita Notre-Dame, ao entrar pelo portal central da capela, se depara com um altar moderno e o coro ao fundo. No entanto, no século 13, quando sua construção foi concluída, essa visão era interrompida pelo biombo da cruz, encimado por um crucifixo gigante.
Segundo o historiador de arquitetura Mathieu Lours, o biombo de Notre-Dame tinha duas funções: a primeira era para dar aos padres uma plataforma para ler as escrituras para o público reunido no domo. Escadas faziam o caminho até o púlpito no topo do biombo, onde os padres oravam para a multidão.
A segunda função era para ter uma maior privacidade. Afinal, o biombo permitia que os padres ficassem isolados no coro durante seus oito serviços de oração diários, mantendo-os fora da vista do público. As esculturas na tela ajudavam a contar a história central do cristianismo.
Sabemos, por descrições antigas, que havia cenas da paixão de Cristo”, diz o historiador Dany Sandron. Da Última Ceia à crucificação e à ressurreição, toda a história estava ali.
Durante uma missa católica, a mesma história é reconstituída durante o sacramento da Eucaristia, quando se acredita que o pão e o vinho se tornam o corpo e o sangue de Cristo.
Porém, durante a Idade Média, as coisas eram diferentes: os fiéis de Notre-Dame não conseguiam ver o padre atrás do biombo enquanto celebrava o sacramento. Eles tampouco podiam ouvir suas palavras murmuradas. O silêncio, entretanto, não teria sido algo frustrante.
“O momento em que não se vê nada e não se ouve nada é o mais importante”, explica Lours. “É o momento mais misterioso, quando as pessoas mais escutam… Elas sabem que algo absolutamente incrível está acontecendo. Um milagre está acontecendo.”
O biombo de Notre-Dame ficou de pé por cerca de cinco séculos, caindo em desuso conforme as práticas litúrgicas fossem mudando. Ainda assim, o clero de Notre-Dame era mais tradicionalista do que as demais igrejas francesas, mantendo o biombo por mais tempo do que o comum.
O biombo só foi desmontado na década de 1710, após o rei Luís XIV sofrer pressão daqueles que desejavam um coro mais aberto — um que incluísse grandes estátuas suas e de seu pai, Luís XIII.
Após sua retirada, ele foi enterrado ao lado de onde ficava. Apesar das esculturas terem sido desmontadas ou quebradas, elas ainda eram consideradas sagradas. O que explica não terem saído da igreja.
Durante as escavações pré-reforma, os arqueólogos encontraram cerca de mil fragmentos do biombo, de todos os tamanhos. Entre eles, cerca de 700 tinham vestígios de tinta — acredita-se que, originalmente, todas as esculturas de Notre-Dame, incluindo as da fachada frontal, eram pintadas com cores vibrantes, antes que isso também saísse de moda.
Benier não sabe o quanto da tela sua equipe escavou, mas acredita que exista muito mais dela enterrada sob o coro, fora do escopo que abrangeu sua escavação.
Apesar disso, é improvável que outras escavações aconteçam tão cedo. “Não está nos planos”, diz o arqueólogo-chefe.
Se não fosse pelo incêndio, Besnier aponta que ele e sua equipe jamais teriam tido a chance de descobrir nem mesmo esta parte parcial do biombo.
E, no final, as escavações arqueológicas não atrasaram o progresso da restauração. A nova torre foi construída dentro do prazo. A Catedral de Notre-Dame foi reaberta em 8 de dezembro.
Deu em Aventuras na História
Descrição Jornalista