Comportamento 05/09/2024 18:59

Os apps de bets que vêm pré-instalados em celulares: ‘É como dar doce a diabético’

Assim que o motorista Bruno Paim, de 27 anos, comprou um celular novo, em junho deste ano, ele correu eufórico para testá-lo o mais rápido possível.

Assim que o motorista Bruno Paim, de 27 anos, comprou um celular novo, em junho deste ano, ele correu eufórico para testá-lo o mais rápido possível.

Mas levou um sustou quando ligou o telefone pela primeira vez: havia aplicativos de serviços de apostas esportivas, mais conhecidos como bets, instalados de fábrica no aparelho.

“Achei um absurdo. Fiquei indignado justamente pelo fato de ter pessoas na minha família que sofrem com vício em jogos. Tanto que, só de raiva, desinstalei os aplicativos na hora”, diz Bruno à BBC News Brasil.

Ele conta que tanto o seu celular quanto o que comprou para a avó em uma loja de de Biguaçu, na Grande Florianópolis (SC), ambos da marca Motorola, vieram com os aplicativos Sportingbet e 365Scores já prontos para usar.

Bruno reclamou sobre o assunto em um post na rede social X, o antigo Twitter, e ficou surpreso com a quantidade de relatos semelhantes que surgiram.

Foi quando me toquei da gravidade da situação”, diz ele.

Bruno diz que ficou preocupado porque a instalação prévia desses aplicativos pode funcionar como um gatilho para pessoas viciadas em jogos.

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“Meu primo tem problema com isso e tá se tratando. Imagina se ele compra um celular que já vem com o aplicativo de apostas instalado? É como dar um doce para um diabético”, diz o motorista.

A BBC News Brasil ouviu fabricantes, órgãos do governo federal e especialistas em direito digital para entender como funcionam essas parcerias, o que pode ou não ser feito pelas empresas e se isso viola algum direito do consumidor.

Além da Motorola, a reportagem identificou que esses aplicativos podem vir instalados em celulares da Samsung.

As duas são, segundo a consultoria GfK, as marcas de smartphones mais vendidas no Brasil com Android, do Google, que, por sua vez, é o sistema operacional de celular mais popular no país.

Procuradas pela reportagem, a Motorola negou, a princípio, que seus celulares vinham com apps de bets pré-instalados, mas depois reconheceu a prática e disse que ela foi abandonada.

A Samsung também negou que venda aparelhos com aplicativos de apostas pré-instalados, embora a reportagem tenha apresentado evidências à empresa do contrário.

Já a Sportingbet e a 365Scores não responderam aos questionamentos sobre as parcerias.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) disse estar “ciente dos impactos do uso abusivo de aplicativos” e que podem ser usados por pessoas vulneráveis.

Mas afirma que “em geral, os termos de uso dos aplicativos indicam a classificação de cada um deles e recomenda ações para os usuários e pais”.

Pessoa cadastrando cartão de crédito em site de aposta

CRÉDITO,GETTY IMAGES Lojas de aplicativos da Apple e do Google não permitem aplicativos de apostas em suas plataformas

O que dizem as empresas

É praxe no mercado que celulares tenham aplicativos pré-instalados dos mais variados tipos, como programas de comércio eletrônico, redes sociais, serviços de meteorologia, dentre outros.

Esses aplicativos são conhecidos no mercado como bloatwares. Alguns já vem no celular quando o cliente compra, outros são sugeridos para instalação quando uma pessoa liga o celular pela primeira vez.

As regras de telefonia no Brasil permitem que os desenvolvedores destes programas façam acordos com as fabricantes de celulares ou as responsáveis por sistemas operacionais para que os programas já venham instalados ou apareçam nas sugestões de instalação, segundo a Anatel.

Recentemente, chamou a atenção de muitas pessoas que os aplicativos de bets passaram a fazer parte deste pacote de bloatware.

Muitas pessoas foram às redes sociais para reclamar assim que perceberam. Na maioria dos casos, os consumidores disseram ter comprado celulares das marcas Motorola e Samsung, que vêm com sistema Android, do Google.

Uma das postagens feitas na rede social X, que teve mais de 270 mil visualizações, desencadeou uma série de comentários após a compradora do aparelho questionar a existência de um aplicativo de apostas instalado.

“E se eu fosse celular de um menor de 18 anos? (…) Na boa, criminoso”, disse ela.

No entanto, segundo a Anatel, ainda não há regras estabelecidas sobre quais tipos de aplicativos podem vir pré-instalados, como já existe na Europa, por exemplo.

Diversos projetos de lei estão em discussão atualmente no Brasil para estabelecer estes critérios, segundo informou a Anatel à BBC News Brasil.

Os termos das parcerias das fabricantes de celulares com as bets não são públicos, e as empresas, questionadas pela BBC News Brasil, não responderam se têm acordos financeiros para incluir aplicativos de apostas nos celulares ou sugestões.

Mas, para os desenvolvedores de aplicativos que vem pré-instalados, os benefícios são claros, segundo especialistas neste mercado: ter um acesso direto e facilitado aos usuários dos celulares, que não precisam ir em busca destes programas.

Luiz Augusto D’Urso, advogado e professor de direito digital da Fundação Getúlio Vargas (FGV), afirma que as fabricantes estão, desta forma, “quase empurrando” os aplicativos de apostas para os usuários.

“Elas estão tentando achar uma forma para ter um acesso instantâneo. Na prática, não é uma conduta tão justa e honesta”, diz Luiz Augusto D’Urso.

D’Urso ressalta ainda que as empresas que fazem essas parcerias com as bets lançam mão de algumas medidas para não violar a lei.

A primeira é não permitir que apostas sejam feitas diretamente por meio dos apps — as lojas de aplicativos do Google e também da Apple, que fabrica o iPhone, não permitem que programas de apostas sejam disponibilizados em suas plataformas.

Desta forma, as empresas podem dizer que os programas servem apenas para saber os resultados dos jogos que são alvos de apostas.

Foi o que afirmou a Motorola ao ser questionada pela BBC News Brasil sobre a pré-instalação dos aplicativos da SportingBet e 365Score em seus celulares.

Ao ser questionada pela primeira vez a respeito, a empresa negou que trabalhasse com aplicativos de apostas esportivas.

“A Motorola não instala aplicativos desta categoria de fábrica, assim como não tem parceria com nenhuma empresa de software deste segmento”, disse a empresa.

Luiz Augusto D’Urso segurando microfone enquanto disursa em púlpito

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL Professor de direito digital da FGV afirma que as fabricantes seguem a lei, mas de uma maneira na qual “quase empurra” os aplicativos de apostas para os usuários

Segundo a fabricante, o comprador do aparelho receberia sugestões de aplicativos para instalação, com base em critérios como a avaliação dos programas na Playstore, a loja oficial do Android.

Posteriormente, ao ser novamente questionada a respeito pela reportagem, a Motorola reforçou que não havia pré-instalação de fábrica e que os aplicativos sugeridos que eram baixados automaticamente quando o celular se conectavam à internet ficavam “inativos no aparelho, e o usuário tem a opção de ativá-los ou desinstalá-los”.

“Por fim, especificamente em relação aos aplicativos SportingBet e 365Score, importante destacar que não se tratam de aplicativos de apostas, mas sim de aplicativos que apenas acompanham, em tempo real, o resultado de partidas”, disse a fabricante.

“A Motorola não sugere a instalação de aplicativos de apostas.”

Mas a empresa mudou novamente sua posição ao ser questionada mais uma vez pela BBC News Brasil e reconheceu que sugeria a instalação de aplicativos de apostas esportivas.

“O aplicativo foi removido das recomendações na semana passada e já não está disponível desde então”, disse a Motorola.

A Samsung também negou que venda aparelhos com aplicativos de apostas pré-instalados, apesar de a reportagem ter informado que um usuário havia demonstrado que programa deste tipo já estava instalado em seu celular da marca sem ter baixado da loja de aplicativos.

“A Samsung não pré-carrega aplicativos de apostas esportivas em seus smartphones”, disse a Samsung em nota.

“Na fase de configuração inicial, são sugeridos ao usuário os aplicativos mais baixados, mas as instalações ocorrem apenas mediante autorização.”

D’Urso, da FGV, refuta este argumento. “Se o celular baixa o aplicativo sozinho ao se conectar a uma rede, não deixa de ser uma instalação automática permitida pela fabricante. Porque é impossível ter um smartphone e não conectá-lo a uma rede”, diz o advogado.

Na visão do especialista, a instalação de aplicativos de fábrica deveria seguir as mesmas regras de quando sistemas operacionais para computadores sugerem programas.

Antes que o download se inicie, o usuário deve concordar com os termos e condições e aceitar baixar cada um deles.

Psiquiatra Luís Guilherme Labinas em foto tirada com folhas ao fundo

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO Psiquiatra afima que aplicativos são desenvolvidos para explorar as vulnerabilidades psicológicas das pessoas

Desenvolvidos para viciar

O Google informou à BBC News Brasil que “o Android é um sistema operacional de código aberto e os fabricantes têm a flexibilidade e a capacidade de personalização para implementar serviços de terceiros para seus usuários.”

“Não permitimos aplicativos ou jogos que ofereçam aos usuários a possibilidade de participarem usando dinheiro real para obter um prêmio de valor monetário do mundo real”, informou a empresa em nota.

“Para manter nossos usuários seguros, além dos esforços humanos, temos sistemas com tecnologia de inteligência artificial que nos ajudam a revisar continuamente a loja em busca de aplicativos que podem violar nossas políticas.”

No entanto, a reportagem verificou que, embora os aplicativos de bets não permitam que apostas sejam feitas diretamente por meio deles, os programas redirecionam os usuários por meio de links para os sites das bets, onde é possível fazer apostas esportivas.

O psiquiatra Luís Guilherme Labinas diz que a presença de aplicativos de apostas pré-instalados em celulares pode ser extremamente prejudicial à saúde mental, principalmente para aqueles que têm predisposição a transtornos de dependência.

Labinas explica que o fácil acesso a esse conteúdo pode levar ao desenvolvimento de comportamentos compulsivos.

“Quando o usuário participa de apostas, mesmo que de forma ocasional, há uma liberação de dopamina, o neurotransmissor associado ao prazer e à recompensa”, diz Labinas, que dirige um instituto que leva seu nome que oferece tratamento contra vícios de vários tipos.

“Essa resposta neuroquímica pode reforçar o comportamento de aposta, levando à repetição compulsiva da ação, na busca contínua por aquela sensação de euforia, e assim, alimentando um ciclo vicioso de dependência.”

O psiquiatra diz que a concepção desses aplicativos de aposta está em explorar de maneira sofisticada as vulnerabilidades psicológicas das pessoas.

“Ele faz isso usando técnicas como a recompensa intermitente, onde vitórias e ganhos são distribuídos de forma imprevisível”, diz o psiquiatra.

“Isso aumenta a expectativa e o desejo de jogar, mesmo diante de perdas consecutivas, mantendo o usuário engajado e perpetuando o comportamento aditivo.”

Labinas afirma que esse estímulo constante do circuito de recompensa pode desregular a capacidade de autocontrole, agravando transtornos de humor e de ansiedade, e tornando o processo de recuperação ainda mais difícil.

Deu em BBC

Ricardo Rosado de Holanda


Descrição Jornalista