Política 18/09/2023 10:41

Análise: A cortina que encobre a viagem de Lula a Cuba

No encontro de Lula com o presidente cubano Miguel Diaz-Canel, a renegociação da dívida com o BNDES é a pauta principal. O governo brasileiro fala em "reescalonamento"

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, na cúpula do G77 China, em Cuba, voltou a pedir que países em desenvolvimento tenham financiamento para transição energética.

O petista defendeu que este grupo “não tem a mesma dívida histórica dos ricos”.

Para Lula, o financiamento climático deve ser assegurado aos países em desenvolvimento segundo suas necessidades”. Defendeu a “industrialização sustentável” e lembrou que os países ricos têm uma “dívida histórica” pelo aquecimento global.

Lula assumirá a presidência do G20 no ano que vem e pretende propor a criação de um Grupo de Trabalho em Ciência, Tecnologia e Inovação voltado para os países em desenvolvimento.
A visita de Lula ocorre às vésperas de sua viagem aos Estados Unidos, para abertura da Assembleia Geral da ONU, na qual se encontrará com o presidente norte-americano, Joe Biden, e terá uma nova oportunidade de se reunir com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, mas isso não consta de sua agenda.

Essa é a primeira viagem Lula a Cuba no terceiro mandato, uma oportunidade especial, porque a reunião internacional mitiga o desgaste do apoio do seu governo ao regime cubano e põe em segundo plano uma pauta negativa das relações entre Brasil e Cuba:

a dívida com BNDES, devido à construção do porto de Mariel pela Odebrecht. Em quase dez anos de operações, a Zona Especial do Porto de Mariel tem 50% de capacidade ociosa. Apenas 44 empresas estão instaladas na ZEPM, outras 20 previstas subiram no telhado.

Projetado para navios do tipo New Panamax, que transportam até 12,5 mil contêineres de 6 metros de comprimento por viagem, o Porto de Mariel nunca recebeu uma dessas embarcações.

Criada nos moldes das Zonas Econômicas Especiais da China, as ZEEs, a zona de Mariel prevê incentivos fiscais, como impostos zerados sobre mão de obra e sobre a produção nos dez primeiros anos, facilidades de infraestrutura, como o fornecimento de água e energia, e acesso fácil aos mercados do Caribe.

Mas essa estratégia não deu certo. Foi concebida para um futuro diferente do mundo atual, em que os Estados Unidos e a China estão em uma guerra comercial.

Em 2016, havia centenas de empresas interessadas em se instalar em Cuba, graças à sinalização de novas relações entre os Estados Unidos e Cuba, após o ex-presidente Barack Obama autorizar a instalação em Mariel de uma fábrica de tratores.

Mas Donald Trump ganhou as eleições e o bloqueio econômico dos Estados Unidos recrudesceu.

Reescalonamento da dívida

No Brasil, o governo Bolsonaro só faltou romper as relações diplomáticas com Cuba. Desde o segundo semestre de 2018, Cuba não paga as parcelas dos financiamentos assinados em 2009 e 2013.

A dívida atualizada de Cuba com o banco chega a US$ 520 milhões, ou seja, cerca R$ 2,5 bilhões.

O embargo americano proíbe operações em qualquer porto nos EUA de navios que atracarem em Cuba por seis meses e promove retaliações comerciais e financeiras às empresas que se instalam na ilha.

No encontro de Lula com o presidente cubano, Miguel Diaz-Canel, a renegociação da dívida com o BNDES é a pauta principal.

O governo brasileiro fala em “reescalonamento” para adequar o regime de pagamento a algo que Cuba possa cumprir.

A ilha vive uma crise continuada, desde o fim da União Soviética. Recebe alguma ajuda da Rússia e da China, mas sofre com a redução dos turistas e a guerra da Ucrânia.

Quando Miguel de Cervantes mandou Dom Quixote viajar, rasgou a cortina mágica, tecida de lendas, que estava suspensa diante do mundo.

A vida surgiu nua e cômica na sua prosa.

“O mundo, quando corre em nossa direção no momento em que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não serem contra o que interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta”, lembra o escritor tcheco Milan Kundera (A Cortina, Companhia das Letras).

Quando estive em Cuba, em 2008, grandes paineis diziam que 70% dos cubanos nasceram depois da revolução e que o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos prejudicavam a saúde, a educação, a habitação e os transportes cubanos.

“Pátria ou morte”, tudo se legitimava e se justificava por causa disso, como os salários baixíssimos, o desemprego mascarado e a prostituição de menores.

A ideia do “homem novo”, da qual tanto se jactavam os dirigentes cubanos, fora sufocada pelo anacronismo do “modelo soviético”, apesar da alegria e criatividade do povo.

Havia expectativa de que a sucessão de Fidel traria mudanças, ma Raúl Castro fez tímidas aberturas, insuficientes para que o país seguisse o modelo adotado, por exemplo, pelo Vietnã.

Mas Cuba está para os Estados Unidos como Taiwan para a China.

A diferença é que o mais sofisticado e competitivo produto cubano é charuto artesanal da Cohiba, os melhores do mundo, enquanto o da ilha rebelde chinesa são os chips da TSMC, que também dominam o mercado mundial.

A razão é política.

Deu em Correio Braziliense

Ricardo Rosado de Holanda


Descrição Jornalista