Pandemia 25/09/2021 07:29
Conheça os impactos ocultos da Covid-19 em órgãos como coração e testículos
Estudos recentes mostram associações da doença causada pelo novo coronavírus com processos inflamatórios que podem atingir o coração, os testículos, os rins e o cérebro
A Covid-19 é uma doença de transmissão respiratória, causada por um vírus chamado tecnicamente de SARS-CoV-2. Com essas características, ela foi inicialmente descrita como uma infecção viral do trato respiratório, com os efeitos esperados da infecção principalmente para órgãos como a traqueia e os pulmões.
Com o avanço da pandemia, a doença também mostrou sintomas como alterações neurológicas, de comportamento, insônia, dores musculares e nas articulações que podem durar meses, a chamada Covid-19 longa.
No entanto, a doença ainda se apresenta como um grande quebra-cabeças com várias peças fora do lugar. Estudos recentes mostram uma associação da infecção com processos inflamatórios que podem atingir o coração, os testículos, os rins e o cérebro.
Entenda o que dizem as pesquisas em andamento sobre o assunto e quais os riscos de complicações pela Covid-19.
O conhecimento científico é construído com o tempo a partir da observação e análise de um conjunto de profissionais. Quando o vírus Zika, transmitido aos humanos pelo mosquito Aedes aegypti, foi introduzido no Brasil em 2014, o conhecimento dos impactos que poderiam ser causados pela infecção eram limitados.
Em outubro de 2015, a médica da maternidade pública de Campina Grande, na Paraíba, Adriana Melo, identificou o número crescente de crianças nascidas com microcefalia. Para tentar entender o que poderia estar por trás das malformações, a médica enviou para análise no Laboratório de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro, amostras do líquido amniótico de duas gestantes, que tiveram os fetos diagnosticados com microcefalia através de exames de ultrassonografia.
Os resultados da análise constataram a presença do genoma do vírus Zika nas amostras, dando início a uma grande investigação pela comunidade científica brasileira e internacional da associação entre o vírus e a malformação de fetos. Hoje, é amplamente conhecido que o vírus é capaz de atravessar a placenta e provocar danos às crianças em desenvolvimento, levando a uma condição chamada Síndrome Congênita do Zika.
Com a Covid-19, as investigações também são contínuas e incluem um grupo diverso de especialistas, como médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, biólogos, biomédicos e virologistas, dentre outros.
A principal porta de entrada do novo coronavírus no organismo são as vias aéreas. A infecção acontece principalmente quando uma pessoa inala as partículas do vírus eliminadas por alguém contaminado, durante a tosse ou espirro.
Uma vez dentro do organismo, o vírus invade as células humanas e dá início a um processo de replicação, ou seja, um único vírus passa a produzir milhares de cópias de si mesmo. Nessa etapa, chamada de incubação, as pessoas podem não apresentar sintomas, embora já possam transmitir o vírus.
O avanço da infecção sinaliza para o sistema imunológico, responsável pela defesa do corpo, a presença de um elemento estranho no organismo.
Para combater o invasor, o sistema imune conta com dois tipos de defesa. A primeira delas, chamada inata, existe desde o nascimento e atua de forma rápida contra qualquer invasor. No entanto, a resposta inata não é específica e pode ter capacidade limitada.
Já a resposta imune adquirida consiste primeiramente na identificação do invasor, para o posterior desenvolvimento de uma estratégia de combate mais específica. Por isso, ela demora mais para ser ativada, mas pode ser mais eficaz no enfrentamento ao vírus.
O mecanismo da resposta imune adquirida é o princípio básico das diferentes tecnologias utilizadas para a formulação das vacinas. Embora os imunizantes possam ser desenvolvidos com metodologias distintas, como as vacinas de vírus inativado, de RNA mensageiro ou de vetor viral recombinante, o objetivo final é o mesmo: oferecer ao sistema imunológico a informação associada ao novo coronavírus para que o próprio corpo desenvolva as defesas específicas contra o microrganismo, como a produção de anticorpos neutralizantes e a indução da resposta celular.
Com o objetivo de frear a infecção, o vírus desencadeia uma resposta inflamatória no organismo. Quando exacerbada, a inflamação pode danificar as células do próprio corpo, provocando lesões em diferentes órgãos.
Quando a inflamação atinge o miocárdio, um músculo do coração, temos uma condição chamada miocardite. Os principais sintomas são dor no peito, falta de ar e palpitações e frequência cardíaca irregular. Pesquisas recentes indicam uma associação entre a Covid-19 e o quadro clínico cardíaco que pode levar à hospitalização, insuficiência e morte súbita.
“A Covid grave proporciona uma infecção generalizada, uma síndrome infecciosa sistêmica. Esse componente vai levar a inflamações em diversos órgãos e sistemas. Em relação a vírus invasor e resposta do hospedeiro, um desses órgãos acometidos pode ser o coração”, afirma o cardiologista Leandro Costa, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Segundo um estudo conduzido por pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), pacientes com a doença tiveram quase 16 vezes mais risco de miocardite em comparação com pessoas que não foram infectadas com o novo coronavírus. A análise considerou o período de janeiro de 2019 a maio de 2021.
De acordo com o estudo, os pacientes com miocardite eram ligeiramente mais velhos do que aqueles sem a condição. A inflamação do miocárdio também foi mais comum em homens (59,3% dos casos) do que em mulheres. A análise dos pacientes com a Covid-19 mostrou que eles tiveram 15,7 vezes o risco de miocardite em comparação com os não infectados.
As taxas de risco variaram de acordo com a idade, mostrando um maior risco para os extremos de faixa etária. Os índices foram de sete vezes para pacientes de 16 a 39 anos para mais de 30 vezes maior entre menores de 16 anos ou mais velhos que 75 anos.
Segundo o especialista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, pacientes que já apresentam alterações cardíacas estruturais tendem a apresentar um risco aumentado para a formação da miocardite. “Todos temos chances frente a uma infecção. Nós não sabemos como o organismo vai responder frente à invasão do agente agressor, mas quem tem alteração estrutural já tem uma predileção maior para sofrer esse tipo de acometimento”, afirma.
Os autores do estudo do CDC destacam que o mecanismo exato da infecção pelo novo coronavírus que pode estar relacionado à miocardite permanece desconhecido. No entanto, ressaltam que a associação entre as duas condições clínicas seja provavelmente semelhante à ação de outros vírus.
A miocardite pode desaparecer com a melhora da infecção, porém alguns pacientes podem desenvolver quadros mais graves com necessidade de internação. O diagnóstico pode ser feito a partir de exames de imagem ou mais específicos, como o eletrocardiograma, que indica alterações no funcionamento do coração.
O tratamento consiste no cuidado da infecção principal, que levou à miocardite, como a Covid-19, com o uso de medicamentos sob prescrição médica que podem contribuir para a regulação das funções do coração, além do repouso.
“O processo é aguardar e controlar as lesões de órgão alvo, que podem ser de diversas e contribuem para o prognóstico cardíaco isolado. Dependendo da alteração cardíaca, entrar com as medicações específicas que atuam na redução de mortalidade”, explica Leandro Costa.
O especialista ressalta que, na maior parte dos casos, os pacientes com a miocardite apresentam uma boa resposta ao tratamento, principalmente quando realizado de forma precoce.
A Covid-19 também pode causar alterações hormonais e inflamação nos testículos que podem ser silenciosas, de acordo com estudos conduzidos por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa, publicada no periódico científico Andrology, mostrou que o novo coronavírus é capaz de invadir todos os tipos de células dos testículos, causando lesões que podem prejudicar a função hormonal e a fertilidade masculina.
Para chegar ao resultado, os especialistas realizaram a autópsia dos tecidos testiculares de 11 pacientes, com idades entre 32 e 88 anos, que morreram devido a complicações da Covid-19. O estudo é coordenado pelos professores Paulo Saldiva e Marisa Dolhnikoff, da Faculdade de Medicina da USP.
“Vimos por microscopia eletrônica que o coronavírus invadiu todas as células do testículo. O vírus está presente nas células que produzem espermatozoides, chamadas Sertoli, nas células que produzem testosterona, chamadas de Leydig, nos vasos sanguíneos e no arcabouço que dá suporte ao testículo”, explica o pesquisador e médico andrologista Jorge Hallak, professor da Faculdade de Medicina e coordenador do Grupo de Estudos em Saúde do Homem do Instituto de Estudos Avançados da USP.
As análises mostraram uma série de lesões, que reduzem a produção de espermatozoides e hormônios. De acordo com o estudo, os danos estão possivelmente associados às alterações inflamatórias desencadeadas pela infecção. A queda na atividade pode estar relacionada a lesões e formação de trombose, que reduzem a oxigenação dos tecidos de estruturas onde os espermatozoides são produzidos.
O médico Jorge Hallak afirma que tem sido observado um aumento na procura por consultas médicas de homens que relatam problemas associados à redução na testosterona, como cansaço, irritabilidade e falta de memória. “O que nós observamos é que muitos pacientes apresentam índices muito baixos de testosterona após a infecção, mesmo em pessoas jovens. A mobilidade de espermatozoides também é muito baixa”, comenta.
No entanto, o especialista explica que a inflamação dos testículos pode não apresentar sintomas. Por isso, o médico sugere que a atenção aos testículos deve entrar na rotina de cuidados em relação à Covid-19, especialmente de pacientes que desejam ter filhos.
“Fizemos exame físico testicular nos pacientes e nenhum deles tinha dor. Todos foram assintomáticos, os que tinham a inflamação e os que não tinham. Não se pode esperar a dor para procurar um médico”, ressalta.
O tratamento da inflamação e da redução das taxas de testosterona varia de acordo com as condições clínicas de cada paciente.
“A reposição de testosterona em um paciente já afetado vai inibir ainda mais a função testicular. Os testículos têm mecanismos de reparação para voltar a produzir hormônios e existem tratamentos medicamentosos que aumentam a produção natural dos hormônios esteroidais, restabelecendo progressivamente a função testicular intrínseca do indivíduo. Isso também vai depender se houve lesão às células de Leydig e em qual grau, que é algo que não sabemos ainda”, explica Jorge Hallak.
Uma pesquisa conduzida por especialistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicada no periódico Frontiers in Physiology, mostrou que o SARS-CoV-2 também é capaz de provocar danos aos rins. O estudo de revisão fez um apanhado de diversos achados científicos que ajudam a explicar como o vírus pode levar a problemas graves no sistema renal.
Os pesquisadores estimam que a chave pode estar na interação do vírus com uma importante enzima presente no organismo humano. Quando uma pessoa é infectada, o novo coronavírus precisa interagir com a enzima chamada “conversora de angiotensina 2” (ACE2, na sigla em inglês). Ela permite que o vírus entre nas células humanas e dê início ao processo de replicação, que é fundamental para o processo de infecção.
“O receptor do vírus é uma proteína chamada ACE2. O vírus se liga nessa proteína para entrar na célula e causar a doença. Ela existe em grande quantidade nos rins, assim como existe em outros órgãos, como o pulmão e o coração. Essa proteína junto com outra enzima, chamada ACE1, agem de forma equilibrada nos rins para manter nossa pressão arterial”, explica a pesquisadora Dulce Elena Casarini, uma das autoras do estudo e professora da Unifesp.
O que os pesquisadores da Unifesp descobriram é que essa enzima específica também é capaz de induzir um desequilíbrio em outros sistemas do organismo, incluindo o responsável por regular a pressão arterial (chamado renina-angiotensina) e outro que está envolvido em vários processos biológicos (chamado calicreína-cinina).
Embora os nomes pareçam complicados, o resultado é simples: a enzima influencia nos processos de inflamação, controle da pressão sanguínea e proliferação celular. “O rim não elimina as substâncias que são tóxicas, vai aumentando a vasoconstrição [contração dos vasos sanguíneos] e sobrecarrega a função renal”, observa Dulce.
Com essa informação, os cientistas compreenderam que o comprometimento das funções da enzima ACE2 pode reduzir o fluxo sanguíneo e a capacidade de filtração dos rins. A alteração da função renal pode dificultar a eliminação de substâncias que, em excesso, podem ser tóxicas para o organismo.
Os impactos da Covid-19 para o cérebro têm sido amplamente estudados desde o início da pandemia. Estudos revelaram que o coronavírus é capaz de invadir as células do sistema nervoso e provocar danos ao órgão.
Uma das pesquisas foi conduzida por especialistas brasileiros da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Instituto D’Or (Idor) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A partir da análise do tecido neural de um paciente que morreu de Covid-19, os pesquisadores descobriram que as células dos neurônios permitem a entrada do vírus.
Embora o vírus consiga produzir o material genético dentro das células, ele não foi capaz de se replicar. Mesmo assim, a presença no tecido nervoso foi capaz de causar danos.
Pesquisadores da USP vão investigar os possíveis danos do novo coronavírus ao cérebro humano. Para isso, será usada a tecnologia dos “minicérebros”, tecnicamente chamados de organoides cerebrais, que foram essenciais para as descobertas do impacto do vírus Zika nas malformações congênitas.
Os experimentos serão conduzidos a partir de células-tronco pluripotentes induzidas (iPSC, na sigla em inglês), que podem ser manipuladas em laboratório para criar estruturas com funções semelhantes às do cérebro. A partir dessas estruturas, os pesquisadores vão poder simular o processo de infecção dos tecidos humanos e compreender melhor os mecanismos utilizados pelo vírus que podem ser nocivos.
A resposta para os danos neurológicos também está na resposta inflamatória exacerbada. Um estudo publicado na revista científica “Cell” indicou a presença de moléculas inflamatórias no líquido cefalorraquidiano, um fluido presente ao redor do cérebro e da medula espinhal.
As alterações podem estar relacionadas aos sintomas de confusão mental, perda de memória e dificuldades cognitivas vivenciados por pacientes com a Covid-19 longa.
Descrição Jornalista
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