Sem categoria 22/07/2013 06:01

Um pouco do que pensa o Papa Francisco

Por fatorrrh_6w8z3t

Por Arnaldo Bloch
Atenção, dogmáticos incautos e ateus furiosos: “Entre o céu e a Terra”, resumo de diálogos entre o então arcebispo de Buenos Aires Jorge Maria Bergoglio e seu compatriota Abraham Skorka — rabino argentino de tendência contemporânea —, não é um livro de pregações e corre o risco de interessar mais a agnósticos que a religiosos.
Publicado originalmente em 2010 pela Mondadori e lançado há pouco no Brasil pela Paralela, é o material mais denso na enxurrada de títulos que chega às prateleiras junto com a vinda do Papa Francisco ao Brasil. Em pouco menos de 150 páginas arejadas de rápida e faminta leitura, traz, de um lado, um missionário cultíssimo que se interessa por poesia hispano-americana profana, cita Borges, quadrinhos e tem obsessão por antropologia.
Do outro, um rabino daqueles que não acham que só a Torá explica o mundo: Freud tem algo a explicar também.
Claro que Deus é a palavra mais citada, mas é quase um pretexto para se falar de quase tudo que é existencial.
Embora a possibilidade da transcendência seja reivindicada como coisa da religião (na gangorra com o dom empírico da ciência) e a filosofia seja posta para escanteio como alternativa para ambos os campos, Skorka e Bergoglio estão, o tempo todo, lidando com seus próprios limites e entrando em terrenos que só lhes foram possíveis através da dúvida.
É no capítulo sobre ciência versus religião, por sinal, que Bergoglio cita Frankenstein para chegar a conceitos como a coisificação do humano e Skorka recorre ao Golem (o monstro de barro com a palavra “verdade” — “emet” na testa) para acusar os que se creem detentores do absoluto de assassinos da Humanidade (“morte-met”).
Para além do diálogo interreligioso, Bergoglio está mais preocupado em encontrar num rabino “nova era” a caixa de ressonância para suas intuições quanto à modernidade e à sua decidida condenação ao “liberalismo selvagem” e ao “império do dinheiro”. A saída, segundo o então futuro papa, estaria num salto nas relações socioeconômicas:
“— Se concebermos a globalização como uma bola de bilhar, anulam-se as virtudes ricas de cada cultura. A verdadeira globalização (…) é como a figura de um poliedro: todas integram mas cada uma mantém sua peculiaridade. (…) A globalização que uniformiza é uma maneira de escravizar os povos.”
Bergoglio surfa com eloquência nos temas mais espinhosos e mostra uma surpreendente empatia pelo ateu, cuja honestidade ele não se vê em posição de julgar.
“— Caso esse ateu tenha baixezas, como eu também as tenho, podemos compartilhá-las para podermos, juntos superá-las.”
O rabino aquiesce, e tempera a franqueza do compadre com o mesmo desprendimento:
“— Dizer que Deus existe como se fosse uma certeza seria uma arrogância.”
Bergoglio crê no demônio, e vê em sua capacidade atual de fazer-nos acreditar em sua inexistência o seu plano mais genial.
Porém, uma coisa é o demônio. Outra, “é demonizar as pessoas”.
Só não explica como é que isto vai servir ao pecador não demonizado quando for recebido por Mefisto em sua piscina de fogo.
Bergoglio, ele mesmo, foi tentado pelo anjo caído e conta como quase largou o seminário por causa de uma garota bacanérrima. Desde então, confia no celibato, mas saúda os padres bizantinos, ucranianos, russos e gregos por casarem-se, fazendo apenas uma ressalva:
“— Eles têm mulher em casa, mas compraram uma sogra.”.
O fundamentalismo é atacado e classificado como “coisa que Deus não quer”. Para rotulá-lo, Bergoglio vale-se de léxico marxista e admite que o rigor excessivo com promessa de recompensa futura é “o pior ópio”, pois não é o de “um Deus vivo”, mas de “um Deus que aliena”.
A morte é trazida à baila com questões profundas, tais quais o apego à matéria e a dificuldade de dizer adeus e cair nos braços de Deus. A eutanásia, condenada em sua forma “ativa”, encontra algum abrigo quando a decisão é dos médicos.
A medicalização do suicídio para perdoar quem põe fim à vida (“é uma doença”) soa como fuga fácil. Mais forte é a passagem em que se fala na crença numa continuidade que não presuma, necessariamente, uma vida em outro mundo, mas outras vidas que, neste mundo, herdem a vida de quem se foi.
A descrença na herança (pela memória, pelo exemplo, pelo ensinamento) faz do homem contemporâneo um ser por demais apegado ao aqui e agora que não alimenta o futuro e, por fim, não evolui em ética e valores.
Os dois religiosos se enrolam, contudo, ao tratar da homoafetividade e do papel da mulher. No caso da posição subalterna da fêmea nas religiões, Bergoglio a justifica com uma homenagem à Virgem Maria, superior aos apóstolos, mas não a Jesus. Na questão do homossexualismo, ele cai em contradição ao defender que a Igreja só avance quando a sociedade avança, citando o exemplo do concubinato, hoje tolerado. Quanto aos gays, contudo, ele não vislumbra este progresso paralelo, e tudo terminaria no que classifica como “retrocesso antropológico”.
Redime-se, porém parcialmente, ao rejeitar o assédio pastoral: a religião tem o direito de opinar pois está a serviço das pessoas, mas não tem direito de forçar nada na vida privada de alguém.
“— Se Deus na criação correu o risco de nos fazer livres, quem sou eu para me meter.”
A política encontra lugar privilegiado num ponto mais avançado do livro. Bergoglio e Skorga prezam a democracia, descartam a teocracia e lamentam a descrença no fazer político, “uma forma elevada de caridade social”. As ideias, na visão de Bergoglio, saíram da plataforma política para a estética. A retórica viria a ser para a política o que a cosmética é para a saúde. O cidadão, incluindo o fiel, tem parte nessa construção: o fato de uma recompensa ulterior não exime o homem da obrigação de lutar pelos direitos pessoais sociais éticos da pátria e da Humanidade.
No trecho mais tenso do diálogo, Abraham Skorka chama seu colega a opinar sobre os atos de Pio XII face à abominação nazista ao afirmar que só a abertura dos arquivos do Vaticano trará a necessária luz ao período.
A resposta de Bergoglio é categórica:
“— O que o senhor diz parece perfeito: que se abram os arquivos e se esclareça tudo.”
Trata-se, aí, de um dos vários exemplos da pauta que o livro traz para o futuro: haverá um abismo ou uma convergência entre as convicções deste Arcebispo de Buenos Aires em 2010 e a agenda do Papa Francisco, detentor dos meios e dos poderes para implementá-las?
A ver. Para crer.

Ricardo Rosado de Holanda


Descrição Jornalista