Saúde 11/06/2025 18:47
Os médicos estavam se preparando para remover seus órgãos. Então ele acordou
Há quatro anos, um homem inconsciente do Kentucky, nos Estados Unidos, começou a acordar quando estava prestes a ser retirado do suporte de vida para que seus órgãos pudessem ser doados.
Apesar de o homem ter chorado, puxado as pernas até o peito e balançado a cabeça, as autoridades ainda tentaram seguir em frente.
Agora, uma investigação federal descobriu que os funcionários da organização sem fins lucrativos encarregada de coordenar as doações de órgãos no estado americano ignoraram os sinais de alerta crescente não apenas naquele paciente, mas também em dezenas de outros possíveis doadores.
Por lá, os investigadores examinaram cerca de 350 casos no período em que os planos de remoção de órgãos foram cancelados. E descobriram que, em 73 casos, os funcionários deveriam ter considerado interromper o procedimento mais cedo, pois os pacientes apresentavam níveis elevados ou em melhora de consciência.
Embora as cirurgias não tenham ocorrido, a investigação revelou que vários pacientes mostraram sinais de dor ou angústia enquanto eram preparados para o procedimento.
A maioria dos pacientes acabou morrendo, horas ou dias depois. Mas alguns recuperaram o suficiente para deixar o hospital, de acordo com a Administração Federal de Recursos e Serviços de Saúde, cujas conclusões foram partilhadas com o The New York Times.
A investigação centrou-se numa prática cada vez mais comum chamada “doação após morte circulatória”. Ao contrário da maioria dos doadores de órgãos, que estão com morte cerebral, os pacientes nesses casos têm alguma função cerebral, mas estão em suporte de vida e não há expectativa de recuperação. Muitas vezes, eles estão em coma.
Se os familiares concordarem com a doação, os funcionários de uma organização de obtenção de órgãos, sem fins lucrativos, começam a testar os órgãos do paciente e a reunir cirurgiões de transplante e receptores. Cada estado tem pelo menos uma organização de obtenção, e elas costumam ter funcionários em hospitais para gerenciar as doações.
Normalmente, o paciente é levado para uma sala de cirurgia, onde os funcionários do hospital retiram o suporte de vida e aguardam.
Os órgãos são considerados viáveis para doação somente se o paciente morrer em uma ou duas horas. Se isso acontecer, a equipe aguarda mais cinco minutos e então começa a remover os órgãos. Regras rígidas devem garantir que nenhuma retirada comece antes da morte ou a cause.
A investigação criticou a Kentucky Organ Donor Affiliates, que coordenava as doações no estado. Agora chamada de Network for Hope, após uma fusão, ela afirmou que sempre segue as regras e nunca remove órgãos até que um hospital declare a morte do paciente.
Mas, segundo os investigadores, os funcionários da organização costumavam pressionar as famílias a autorizar a doação, assumiam indevidamente os casos dos médicos e tentavam instigar a equipe do hospital a remover o suporte de vida e permitir a cirurgia, mesmo que houvesse indícios de aumento da consciência nos enfermos.
Alguns funcionários não reconheceram que sedativos hospitalares ou drogas ilegais poderiam mascarar a condição neurológica dos pacientes, o que significa que eles poderiam estar em melhor estado do que pareciam.
Em dezembro de 2022, uma vítima de overdose, aos 50 anos, começou a se mexer menos de uma hora após ter sido retirada do suporte de vida e começou a olhar ao redor. A tentativa de retirada não foi imediatamente encerrada, nem o paciente recebeu qualquer explicação.
“O paciente não tinha ideia do que estava acontecendo, mas estava ficando mais consciente a cada minuto”, observaram os registros.
Após mais 40 minutos — quando os órgãos do paciente não seriam mais qualificados para doação — a tentativa foi cancelada e ele foi transferido para uma unidade de terapia intensiva. Mais tarde, ele se sentou e conversou com sua família antes de morrer três dias depois, concluiu a investigação.
No total, a investigação sinalizou 103 casos como tendo “características preocupantes” e afirmou que os problemas eram mais suscetíveis em hospitais rurais.
E ainda observou que mais da metade dos transplantes organizados pela organização de Kentucky eram de pacientes com morte circulatória, acima da média nacional.
Em todo o país, as autoridades recuperaram cerca de 20.000 órgãos desse tipo de doador no ano passado, quase o dobro do total em 2021, de acordo com a Organ Procurement and Transplantation Network, que supervisiona o sistema de transplantes.
Os reguladores federais informaram à rede na semana passada que a organização de Kentucky deve aumentar o treinamento da equipe e realizar avaliações neurológicas em potenciais doadores de órgãos a cada 12 horas, entre outras mudanças. Na quinta-feira, a organização disse que recebeu um relatório sobre a investigação do governo.
“Cumpriremos integralmente todas as recomendações sugeridas”, disse em um comunicado.
A investigação federal começou no segundo semestre do ano passado, depois que uma comissão do Congresso ouviu o depoimento sobre o homem do Kentucky, Anthony Thomas Hoover II, que sofreu uma overdose em 2021.
Ele ficou inconsciente por dois dias antes que sua família concordasse em doar seus órgãos. Nos dois dias seguintes, a organização de aquisição avançou para a cirurgia, mesmo com a melhora do seu estado neurológico, segundo a investigação. Durante um exame, os registros mostram que ele estava “se debatendo na cama”.
Ele foi sedado para impedir mais movimentos.
A equipe do hospital “estava extremamente desconfortável com a quantidade de reflexos que o paciente estava apresentando”, dizem as anotações do caso. “A equipe do hospital continuava afirmando que se tratava de eutanásia.” Um coordenador da organização de aquisição garantiu que não era.
Quando Hoover foi levado para a retirada, os registros mostram que ele chorou, puxou os joelhos para o peito e balançou a cabeça. Um médico do hospital se recusou a retirar o suporte de vida. Hoover acabou se recuperando. Agora com 36 anos, ele tem lesões neurológicas persistentes.
Em entrevistas ao The New York Times, dois ex-funcionários da organização de aquisição disseram que os superiores tentaram pressionar o médico a continuar a tentativa de retirada.
— Se não fosse por aquele médico, nós teríamos seguido em frente com certeza absoluta — disse Natasha Miller, que estava na sala.
Três outros ex-funcionários de Kentucky disseram ter visto casos semelhantes.
A investigação não revelou se houve pressão sobre os médicos que trataram Hoover.
A Network for Hope não respondeu a um pedido de comentário sobre o caso. O gabinete do procurador-geral do Kentucky também iniciou uma investigação. Na quinta-feira, o gabinete informou que a investigação estava em andamento.
Deu em O Globo
Descrição Jornalista