O tráfego de carros e ônibus ao longo da Avenida Jaguarari contrasta com a rotina apreensiva dos comerciantes que mantêm seus negócios no trecho entre a avenida Nevaldo Rocha e a esquina com a Antônio Basílio, no bairro de Lagoa Nova.
O cenário, já conhecido popularmente como “cracolândia de Natal”, se mantém à margem da resolução prometida por autoridades públicas.
histórico de furtos, abordagens de usuários de entorpecentes e abandono de imóveis transformaram a área em ponto de atenção constante.
Após um ano de reuniões entre secretarias e forças de segurança para definir um plano de enfrentamento, moradores e trabalhadores da região ainda esperam por soluções efetivas.
Eduardo Constantino (nome fictício), morador da Jaguarari desde criança e comerciante da região, recorda que a fama do local como foco da criminalidade é antiga, com relatos pelo menos desde 1977, e que foi crescendo aos poucos.
Alguns clientes ficam com medo, mas a gente tenta esclarecer. Eles não mexem, porque se começarem a mexer com um, com o outro, cada um que ele mexer é um inimigo que ele vai criar”, afirma.
O relato revela como a convivência com usuários de drogas se tornou parte da paisagem urbana, exigindo estratégias de sobrevivência que incluem a vigilância mútua entre vizinhos e o cuidado constante com os estabelecimentos.
“Aqui, se meu vizinho está tendo algum problema, é dever meu ajudar. A gente se protege como pode. Melhorou bastante, mas a gente sabe que os usuários que não estão aqui só se deslocaram para outros locais”, considera. Apesar de nunca ter sido diretamente afetado por arrombamentos, Eduardo destaca que ter ciência de outros comerciantes da área já foram vítimas por mais de uma vez.
Na tentativa de enfrentar a situação, uma reunião foi realizada em março de 2024, sob a coordenação da Secretaria de Segurança Pública do RN (Sesed), com representantes da saúde, assistência social e forças policiais. A ideia era traçar um plano intersetorial. Procurada pela reportagem para esclarecer o andamento do plano, a Sesed repassou da responsabilidade para a Polícia Militar.
De acordo com a PM, através do Comando de Policiamento da Capital (CPC), foram realizadas diversas ações integradas na região, em parceria com outros órgãos de segurança e secretarias municipais responsáveis, envolvendo diretamente os dependentes químicos naquele local. A nota enviada pela corporação, no entanto, não detalha quais foram as ações executadas.
Em outro ponto do quarteirão, o comerciante João Carlos (nome fictício) reforça que a insegurança, ainda que não vivenciada diretamente com furtos, se apresenta por meio da desconfiança da clientela.
“A gente sente essa dificuldade. O cliente vem, mas quando chega aqui, fica meio desconfiado. Não discriminando, porque são seres humanos, mas querendo ou não, existe um medo. Dificulta um pouco”, afirma. Além de atuar como comerciante, ele também vive nas proximidades do local.
A escolha de manter o negócio na Jaguarari, mesmo diante da fama que a região carrega, foi baseada na acessibilidade do aluguel e na localização central. “É um local bem localizado, e o aluguel é mais barato justamente por causa da situação. Eu sabia das dificuldades, mas também sabia que ia ter meus clientes e meus serviços. E até aqui tem dado certo. Nunca tive problema com eles”, garante. Câmeras internas complementam o monitoramento do espaço.
Já essa experiência não foi a mesma relatada por Pedro Alves (nome fictício), comerciante há mais de três décadas na região, que foi vítima direta de arrombamento.
“Levaram ferramenta, tudo. Precisei reforçar a entrada de lá com ferro. Infelizmente não deu para identificar quem fez”, lamenta o caso, que ocorreu há cerca de dois anos. Para ele, o problema persiste, mesmo com momentos de aparente trégua. “Tem época que diminui um pouco, mas depois aparece de novo. São sempre os mesmos”, relata.
Ações
Ainda segundo a PM, as ações executadas de forma integrada, também com entidades representativas associações de pessoas em situação de vulnerabilidade ou dependência química, tiveram um resultado positivo desde então.
“Houve uma redução significativa na presença de pessoas em situação de dependência química, e, consequentemente, diminuição das ocorrências delituosas que vinham sendo registradas na região”, afirma a nota enviada.
A corporação afirma ainda que permanece atuante na área através de “patrulhamento contínuo, barreiras itinerantes, além de vistorias e análise da mancha criminal, que já demonstram queda nos índices desde o início das ações integradas, realizadas em parceria com órgãos estaduais e municipais”.
A PM ainda reforça que segue à disposição dos comerciantes e da população através do número 190. Já para denúncias anônimas, a população pode acionar o Disque Denúncia 181.
Apesar da aparente melhora, Carlos acredita que a mudança pode ser apenas momentânea ou fruto de deslocamento das pessoas em situação de rua. “Eu conto mais com a assistência social, de pegar esse pessoal, dar uma oportunidade, levar para um local. Muitos são profissionais, têm capacidade. O ideal seria abraçar, dar uma oportunidade. O policiamento só tira de um canto e leva para outro”, avalia.
Somente no trecho da avenida Nevaldo Rocha e a esquina com a Antônio Basílio existiam mais de 13 pontos comerciais de portas fechadas até o começo da manhã desta quinta-feira (6), entre placas de “vende-se” ou “aluga-se”.
Já em espaços residenciais, boa parte possui mais de um reforço na entrada, seja com portões ou tapumes. Ainda em 2024, a Jaguarari passou por uma requalificação viária, se transformando em um binário.
Assistência social encontra dificuldades
Cientes de que o cenário não se trata de um problema isolado de segurança pública, a reunião de março de 2024 também contou com as pastas de assistência social do Estado e do município de Natal.
Segundo Adriano Gomes, secretário adjunto da Secretaria de Estado do Trabalho, da Habitação e da Assistência Social (Sethas), o problema da Jaguarari envolve também saúde mental, crise econômica e exclusão social.
“Enquanto estado, temos um papel estratégico de pensar, construir, orientar. Mas quem executa é o município. A gente sentou com a Semtas por mais de uma vez, nossas equipes deram suporte, orientação e integração da rede socioassistencial”, explica.
Ele reforça que os diagnósticos mostram que a raiz do problema é mais profunda.
“O senso comum costuma dizer: ‘Ah, são drogados’. Não é isso que o censo apontou. São conflitos familiares, desilusões profissionais, relacionais. A droga aparece como consequência. É o chefe de família que perdeu o emprego, que deixou de prover, que não tem estudo, não tem uma profissão consolidada”, afirma Gomes. O Censo de 2022 revelou que mais de 2.200 pessoas vivem em situação de rua no RN, sendo 1.491 em Natal.
Os dados mais recentes, de 2024, indicam crescimento de 14,5% no número de famílias nessa situação, com 1.850 registros no Cadastro Único apenas na capital.
Do total de pessoas vivendo em domicílios improvisados, 42,4% estão em barracas, tendas de lona ou ocupações precárias. O quadro revela não apenas a precariedade das condições de vida, mas também a urgência por respostas estruturadas.
A atuação da Sethas se dá por meio do cofinanciamento e apoio técnico, mas as ações práticas ficam a cargo da Prefeitura.
“A busca ativa é atribuição do município. Nós temos o número, mas o município sabe onde eles estão”, explica Gomes. Entre as medidas articuladas com o governo federal, está a destinação de 3% das vagas do programa Minha Casa, Minha Vida para pessoas em situação de rua, anunciada em abril deste ano.
“Essa população ficou sem alternativa. Perderam emprego, não conseguiram mais pagar aluguel. É por isso que estão na rua”, avalia.
Do ponto de vista de quem vive o cotidiano da Jaguarari, se reforça a ideia de que há solução apenas com força policial é insuficiente.
“Mesmo que de 10 ou 100 a gente consiga resgatar 10, são 10 vidas. O primeiro passo seria a oportunidade, a confiança. Um projeto que botasse eles para fazer artesanato, gerar renda, se sentir úteis. O policiamento só troca de lugar, não resolve”, conclui João Carlos, com a convicção de que o problema não está apenas nas ruas, mas na ausência de uma política pública eficaz e contínua.
Do lado da Prefeitura, a Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (Semtas), que optou se pronunciar através de nota, informou que, desde a reunião intersetorial coordenada pela Sesed realizada ano passado, vem atuando de forma articulada com os demais órgãos e instituições envolvidas.
“No âmbito da assistência social, a Semtas informa que, por meio do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), vem realizando as devidas ações de monitoramento, escuta qualificada e encaminhamentos necessários, conforme cada situação identificada, sempre respeitando os protocolos e o perfil das pessoas atendidas. A Semtas reitera o compromisso de continuar atuando na garantia de direitos e na promoção do acesso à rede socioassistencial para a população que necessita desse atendimento”, cita a nota.
De acordo com informações do Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) garante atendimento e acompanhamento para qualquer tipo de dependência química. A Atenção Primária à Saúde (APS) concentra a porte de entrada na abordagem desses pacientes, contando também com centros especializados nesse atendimento, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
Os nomes dos comerciantes presentes nesta matéria foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados, que optaram por não ter seus nomes verdadeiros divulgados por questões de segurança.