Sexo 14/04/2025 12:13

‘Mulheres do job’: profissionais do sexo trocam dicas e oferecem ‘mentoria’ a iniciantes no TikTok

O que eu faço aqui não é romantizar. Eu estou compartilhando a minha experiência.”

A frase é da profissional do sexo Sara Müller, que acumula mais de 60 mil seguidores em suas contas nas redes sociais. A paulista de 30 anos publica vídeos quase diários no TikTok sobre o dia a dia da profissão, respondendo perguntas sobre a razão de ter escolhido a carreira e os desafios de trabalhar com sexo.

Ao pé de suas publicações, comentadores se alternam entre elogios à coragem por falar de um assunto tabu – “fala a realidade e tira todos os estereótipos” – e críticas sobre a forma como o tema é tratado – “quer glamourizar a profissão”.

“As pessoas acham que a profissional do sexo é uma coitada, que só passa perrengue e apuro. Aí quando aparece alguém falando que está se dando bem, é acusada de estar romantizando”, rebate Sara, que trabalha na área desde 2015.

“A profissional que trabalha com sexo não tem que ficar marginalizada, escondida”, afirmou ela à BBC Brasil. “Eu gosto de fazer vídeos justamente para tentar abrir a mente das pessoas. É um trabalho como qualquer outro.”

Mas ela não é a única “mulher do job” ou GP (abreviação de garota de programa) repreendida nas redes sociais pela franqueza com que trata de sua profissão.

Perfis de profissionais do sexo que usam plataformas como TikTok e Instagram para divulgar seu trabalho se multiplicaram nos últimos anos, com reações mistas por parte do público.

Além dos vídeos sobre o dia a dia da profissão, as influencers usam o espaço para passar dicas de segurança, compartilhar segredos de beleza e até oferecer mentoria para iniciantes.

“Quando falamos sobre ‘job’, significa nada mais nada menos do que programa”, explica em sua conta Mariel Fernanda, que tem quase 160 mil seguidores em seu TikTok.

A categoria cresceu tanto nas redes sociais que ganhou até referências em músicas e se tornou tema para influenciadores de outros nichos. Não é raro, por exemplo, se deparar com blogueiras especializadas em moda ou beleza repassando indicações sobre o perfume mais atraente, o batom mais resistente ou o melhor método de depilação usado pelas “mulheres do job”.

Mas também há quem condene a exploração do corpo da mulher, apoie a abolição da atividade e acuse as criadoras de conteúdo de romantizarem a profissão.

As críticas giram principalmente em torno do temor de que a popularização dos vídeos e das músicas sobre o tema possam influenciar uma nova geração a se aproximar do trabalho sexual sem conhecer a sua realidade completa.

A preocupação também já foi manifestada pelas próprias trabalhadoras sexuais. “Eu sinto que tem muita menina iludida. E está na hora de acordarem para a vida, porque o job não é o mundo da Disney”, desabafou uma delas em seu perfil no TikTok.

‘A quem interessa a falta de informação?’

Para Deusa Artemis, profissional do sexo e criadora de conteúdo que usa o codinome no dia a dia de sua profissão, as redes sociais são justamente uma forma de combater a falta de informação.

“Entramos para prostituição sem nenhuma informação – e isso leva muita gente achar que é um trabalho fácil”, disse em entrevista à BBC Brasil. “O que muitas meninas fazem, inclusive eu, é divulgar e conversar para que o trabalho seja mais seguro e para que se crie uma comunidade mais unida.”

Em sua conta no TikTok, que tem mais de 25 mil seguidores, ela divulga orientações sobre como iniciar na carreira, sugestões para aumentar o lucro e dicas de segurança e saúde.

“Não vejo nenhuma GP romantizando a profissão. Todas que sigo estão mostrando o seu dia a dia, falando das dificuldades e das coisas boas – porque tem coisa boa também, viu?”, defende.

“A quem interessa que uma menina entre no trabalho sexual sem nenhum tipo de informação?”, questiona a paulista de 32 anos. “Só ao homem que vai usufruir desse serviço e tirar vantagem dessa mulher.”

Ela se diz ainda muito incomodada pela “hipocrisia” com que grande parte da sociedade trata as profissionais do sexo.

Foto de Deusa Artemis

Crédito,Arquivo pessoal “A quem interessa que uma menina entre no trabalho sexual sem nenhum tipo de informação?”, questiona a paulista que se apresenta como Deusa Artermis. Ela entrou para o trabalho sexual há dois anos e usa as redes sociais para discutir o tema

“Ao mesmo tempo em que me sentia marginalizada, era tratada com agressividade por alguns, não parava de ser procurada pelos homens que usam e abusam desse serviço”, relata.

Profissional do sexo há pelo menos dois anos, ela começou a cursar Ciências Sociais em uma faculdade federal para ajudá-la em seu objetivo como defensora da causa.

“Entrei nas redes sociais justamente para bater de frente com o hate [ódio, em inglês].”

A gaúcha Monique Prado também vê nas redes sociais uma forma de combater o preconceito.

“Através das redes sociais, vemos cada vez maior o número de pessoas se declarando trabalhadoras sexuais – homens e mulheres, cis e trans. Saber que existem, acompanhar a rotina e postagem dessas pessoas é muito positivo, ajuda a combater o estigma, mostra que existimos e estamos mais perto do que as pessoas imaginavam”, diz à BBC Brasil.

Monique atua como profissional do sexo desde os 19 anos e nas redes sociais divulga não apenas seu trabalho como acompanhante e produtora de conteúdo adulto, mas também escritora e ativista.

“Que a gente mostre este lado que a sociedade esconde, que o trabalho sexual é um trabalho, que também somos bem tratadas, que muitas vezes ganhamos bem e que nosso trabalho nos permite ter uma vida digna, muitas vezes estendendo ela a nossas famílias, me parece muito positivo e ajuda demais a amenizar o estigma”, afirma.

‘O job não é o mundo da Disney’

Além de usar suas redes sociais para contar histórias do seu trabalho, Sara Müller também oferece serviço de mentoria para outras mulheres no trabalho sexual.

“Faço uma análise do contexto das mulheres que me procuram, do porquê que elas querem começar e dos caminhos que elas podem pegar baseado na minha vivência”, relata.

“Indico métodos que funcionaram para mim, como abrir uma rede social e investir em ensaios de foto, por exemplo. Mas nunca vou falar para alguém começar numa boate, porque eu nunca passei por isso.”

Sara afirma ainda que a grande maioria das pessoas que a procuram já atuam como trabalhadoras sexuais, ainda que há pouco tempo. Ela afirma nunca ter auxiliado mulheres que estavam “deslumbradas” ou pouco cientes das dificuldades e riscos da carreira.

Sara Müller

Crédito,Arquivo pessoal “A profissional que trabalha com sexo não tem que ficar marginalizada, escondida”, diz Sara

E ela não é a única que usa a plataforma para buscar clientes entre as próprias profissionais do sexo.

Mariel Fernanda, por exemplo, oferece aconselhamento para mulheres maiores de 18 anos que queiram produzir conteúdo adulto para a internet. “Seu corpo, suas regras, seu lucro”, diz seu site, Mentoria para Musas.

Além de um canal no Telegram para compartilhamento de experiências, a mentoria inclui aconselhamento particular e documentos, fotos, áudios e vídeos com dicas.

Outra influenciadora do meio, que se identifica nas redes apenas como Dihmayara, afirma que é procurada com frequência por mulheres que querem entrar no ramo, apesar de não oferecer nenhum serviço oficial de aconselhamento.

Em uma série de vídeos postados em fevereiro, ela se abriu sobre sua frustração em torno da romantização da profissão.

“A mensagem que mais recebo no direct [caixa de mensagens privadas no Instagram ou TikTok] é ‘quero entrar para o job'”, diz. “Quando leio, penso ‘meu, quem foi que romantizou a prostituição?'”.

Dihmayara afirma sempre ter falado “a verdade sobre o job” e se preocupar com mulheres que “acham que vai ser fácil” entrar para a prostituição. “Parem de achar que job é conto de fadas, é um mundo da Disney”, diz.

“Parem de achar que as meninas que vocês seguem por aí que romantizam o job tem uma vida perfeita – porque elas não têm”, diz. “A gente só posta a parte boa da vida, e com o job é a mesma coisa.”

A trabalhadora do sexo e influenciadora também usou as redes sociais para fazer um alerta para as mulheres que desejam seguir a carreira em busca de “dinheiro fácil”.

“A parte ruim existe e ela é 80% do job”, desabafou.

Um fenômeno histórico

O antropólogo Thaddeus Blanchette, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador associado do Observatório da Prostituição, reconhece os muitos desafios que as trabalhadoras do sexo enfrentam em seu cotidiano, mas associa as acusações sobre romantização ao estigma que envolve o tema.

“Ninguém questiona se qualquer outra profissão está sendo glamourizada nas redes sociais”, diz. “Não vemos questionamentos sobre a romantização da profissão de policial em filmes e programas de TV, por exemplo.”

Para Blanchette, ninguém escolhe a prostituição por glamour. “Basta apenas observar a forma como as profissionais do sexo são tratadas na sociedade brasileira para perceber que a ideia de que um vídeo na internet pode glamourizar a vida de prostitutas não faz sentido nenhum”, diz.

“Devemos olhar para os problemas que as trabalhadoras do sexo enfrentam e discutir como podemos, como sociedade, ajudá-las e protegê-las. Não falar de glamourização”, diz o especialista.

Ele alerta, porém, que pode haver exceções. “Mas claro, tudo depende de quem está produzindo e qual é o conteúdo. Estou dando apenas uma visão geral, sem analisar nenhum caso específico.”

No Brasil, a prática da prostituição por adultos, de forma voluntária e autônoma, não é criminalizada. O que o Código Penal Brasileiro considera crime é a exploração da prostituição alheia, especialmente quando há lucro com o trabalho sexual de outra pessoa.

E apesar da Classificação Brasileira de Ocupações reconhecer a prostituição como trabalho livre, os profissionais do sexo não têm acesso formal a direitos trabalhistas no país.

Ainda segundo o pesquisador, a adaptação das “mulheres do job” às redes sociais, da maneira como estamos observando hoje, era só questão de tempo.

“A prostituição está e esteve presente em todas as sociedades do mundo, segundo os arquivos históricos. E toda vez que uma nova mídia de comunicação surge, as trabalhadoras do sexo se adaptam a ela para encontrar clientes, escapar de exploradores e aumentar a sua segurança”, diz. “Os primeiros grupos a usar os jornais para colocar propagandas no século 18, foram as prostitutas.”

“Então o que estamos vendo agora não é nada novo.”

Marginalização e violência

Especialistas que atuam na área consultados pela BBC Brasil reconhecem, porém, que há um abismo de desigualdade na forma como o trabalho sexual é exercido e tratado no Brasil.

Isto é, as “mulheres do job” que ganham a vida cobrando altos valores por encontros usam as redes sociais para atrair clientes ou realizam apenas atendimentos virtuais são apenas uma amostra do que significa ser profissional do sexo no Brasil atualmente, dizem.

A delegada de polícia e doutora em Sociologia e Direitos Humanos Cyntia Carvalho e Silva chama a atenção para a importância de enxergar a ocupação como um todo.

Vídeos de profissionais do sexo falando sobre cuidados com a pele e perfumes

Crédito,Reprodução/TikTok ‘Mulheres do job’ ganharam referências em músicas e se tornaram inspiração para influenciadores de outros nichos, como moda e beleza

“A prostituição de rua, por exemplo, não é nada glamourizada. Muitas prostitutas vivem marginalizadas, especialmente as mulheres trans, negras e as prostitutas mais idosas”, diz. “Há muitos casos também de pessoas que se prostituem para alimentar o vício, aceitando fazer um programa por algo como R$ 5 ou uma pedra de crack.”

Segundo a profissional que atua na Delegacia de Combate à Discriminação no Distrito Federal, muitas profissionais do sexo também vêm seu ofício associado à criminalidade contra a sua vontade.

“Apesar da crença de que a prostituição está sempre ligada ao tráfico de drogas, na maioria das vezes são as prostitutas que se tornam vítimas dessa criminalidade”, argumenta Carvalho e Silva.

Além disso, não são incomuns os casos de violência contra trabalhadoras do sexo, afirma. Segundo a delegada, as agressões partem principalmente dos exploradores, mas também em alguns casos dos clientes.

Mas segundo ela, é difícil ter uma ideia precisa do quanto a violência afeta as profissionais do sexo no Brasil, já que a subnotificação é grande e, quando denunciados, os casos nem sempre são registrados de uma maneira que identifique a verdadeira ocupação da vítima.

“As profissionais do sexo têm que ser ouvidas, temos que falar sim da atividade de prostituição, mas sempre trazendo esse contraponto de que é uma atividade difícil, heterogênea e que não tem acesso a direitos trabalhistas no Brasil neste momento”, opina Carvalho e Silva.

O antropólogo Thaddeus Blanchette estuda ainda como essa desigualdade na forma de exercer o trabalho sexual cresceu durante e após a pandemia de covid-19.

“Há uma enorme divisão entre quem pode usar as novas mídias sociais e quem não tem ideia ou condições de como fazer isso”, afirma.

Segundo o pesquisador, enquanto parte das profissionais do sexo se especializaram em produzir conteúdo para a internet, outra parcela encontrou dificuldade de navegar nas novas mídias. “Grupos de mulheres mais velhas, acima de 40 anos, tiveram que tomar cada vez mais riscos ou migrar para outros trabalhos incrivelmente mal-remunerados para continuar a ganhar dinheiro”, relata.

‘A gente se complementa’

Por tudo isso, a ativista e profissional do sexo Juma Santos acredita que o caminho para a conquista de mais direitos e respeito passa por uma união entre todas as classes e gerações.

Ela é coordenadora da Rede de Redução de Danos e Profissionais do Sexo do DF e fundadora da Tulipas do Cerrado, uma organização sem fins lucrativos que ampara profissionais do sexo e moradores de rua do Estado.

As mulheres e homens no seu dia a dia, relata, têm uma realidade muito distinta daquela mostrada pelas do “job” nas redes sociais.

“Mas isso não quer dizer que elas estejam negligenciando uma parte da comunidade”, diz. “Essa realidade não faz parte do cotidiano delas, e é muito difícil querer abranger todo o trabalho sexual.”

Ao mesmo tempo, diz Juma Santos, as gerações mais velhas de profissionais do sexo têm muito a contribuir no debate sobre luta contra estigmas e conquista de direitos pela classe.

“As ‘meninas do job’ estão dando um grande passo na nossa luta. O desafio agora é unir o novo ao antigo para que nós consigamos trabalhar unidas e atingir todos os públicos.”

Deu em BBC

Ricardo Rosado de Holanda


Descrição Jornalista