Comportamento 09/03/2025 18:49
Fones de ouvido que cancelam ruídos estão causando perda de audição em jovens?
Seja o ruído do caixa do supermercado ou o som da máquina de café na lanchonete, o nosso cérebro trabalha constantemente para decodificar centenas de ruídos por dia.
Mas, para algumas pessoas, esses ruídos de fundo podem ser tão insuportáveis que os distraem, prejudicando o reconhecimento de vozes ou alertas.
A assistente administrativa Sophie tem 25 anos de idade, mora em Londres e vive esta realidade. Ela se acostumou às pessoas dizerem que ela não escuta, perde a concentração ou é “meio boba”.
“Embora eu possa ouvir esses ruídos no ambiente, não consigo distinguir de onde eles vêm”, explica ela. “Sei que é a voz de uma pessoa, mas realmente não consigo computá-la com a rapidez necessária.”
Ela acabou sendo diagnosticada com Transtorno do Processamento Auditivo (TPA), uma condição neurológica que faz com que o cérebro tenha dificuldade de entender sons e palavras faladas.
Seu audiologista e outros estudiosos na Inglaterra, agora, pedem mais pesquisas para descobrir se esta condição pode estar relacionada ao uso excessivo de fones de ouvido com cancelamento de ruídos.
Sophie foi criada na zona rural, em uma fazenda tranquila.
Ela só percebeu alterações da audição alguns anos atrás, quando começou a cursar a universidade em Londres. Especificamente, ela tinha dificuldade de identificar a origem dos diferentes sons.
Ela raramente comparecia às aulas presenciais na universidade, tendo optado por acompanhá-las online com legendas.
“Todas as palavras pareciam ininteligíveis quando eu tentava ouvir na aula presencial”, ela conta.
Esta situação também prejudicou sua vida social. Sophie costuma deixar os bares e restaurantes mais cedo, devido ao “ruído insuportável” dos locais.
Crédito,Getty Images As salas de aula podem ser repletas de ruídos, que podem fazer com que alunos com transtorno do processamento auditivo enfrentem dificuldade para ouvir o professor
A causa do diagnóstico de Sophie é desconhecida. Mas seu audiologista acredita que o uso excessivo de fones de ouvido com cancelamento de ruído pode ter sido um fator de influência. Ela usa esses fones por até cinco horas por dia.
Outros audiologistas concordam. Eles afirmam que é preciso ter mais pesquisas sobre os possíveis efeitos do uso prolongado desses fones de ouvido.
Cinco departamentos de audiologia do NHS, o sistema de saúde pública do Reino Unido, declararam à BBC que houve um aumento da quantidade de jovens encaminhados a eles pelos clínicos gerais com problemas de audição. Estes jovens passam por testes de audição e recebem resultados normais – a sua capacidade de processar os sons é que está prejudicada.
O TPA é mais comum entre pessoas neurodivergentes, que sofreram lesões cerebrais ou vítimas de infecções no ouvido médio na infância.
Mas estão surgindo mais pacientes com TPA fora destas categorias, o que leva os audiologistas a questionar a contribuição de fatores externos, como os fones de ouvido com cancelamento de ruído.
Renee Almeida é chefe de audiologia clínica para adultos do Imperial College Healthcare NHS Trust, em Londres. Ela afirma que é importante ouvir uma diversidade de sons, para que o cérebro possa decidir quais deles são importantes, para poder se concentrar neles.
A equipe de Almeida observou um aumento da quantidade de jovens encaminhados para atendimento auditivo no último ano.
“Existe uma diferença entre ouvir e escutar”, explica ela. “Podemos observar que nossa capacidade de escutar enfrenta dificuldades.”
De fato, os fones de ouvido com cancelamento de ruído trazem benefícios, particularmente para a saúde dos ouvidos a longo prazo. Sua função à prova de som pode evitar que as altas frequências e o ruído alto atinjam e prejudiquem o ouvido, mesmo quando ouvimos música.
A editora de tecnologia da organização britânica Which?, Lisa Barber, afirma que a popularidade desses aparelhos “explodiu” nos últimos anos, mas o nível de transparência pode variar entre os diferentes modelos.
“Alguns oferecem simplesmente o cancelamento passivo dos ruídos, ou seja, a vedação acústica entre os fones e os ouvidos reduz o ruído próximo”, explica ela. Já outros possuem um modo de transparência que permite ouvir parte dos ruídos de fundo.
Mas a vice-presidente da Academia Britânica de Audiologia (BAA, na sigla em inglês), Claire Benton, destaca que, se bloquearmos os sons do dia a dia, como o ruído dos carros, existe a possibilidade de que o cérebro possa “se esquecer” de filtrar os sons.
“Você quase cria um ambiente falso quando usa esses fones, ouvindo apenas o que você quer ouvir. Não precisamos trabalhar o som”, afirma ela.
“Estas técnicas mais complexas de audição de alto nível no seu cérebro, na verdade, só terminam de se desenvolver no final da adolescência”, explica Benton. “Por isso, se você só usar fones de ouvido com cancelamento de ruído e permanecer nesse mundo falso no final da adolescência, você irá causar um leve atraso da sua capacidade de processar a fala e os ruídos.”
Na Inglaterra, o tratamento de TPA oferecido pelo NHS para as pessoas que sofrem dificuldades com o processamento de sons é limitado.
Uma pesquisa realizada em 2024 em todo o Reino Unido, pela BAA e pela ENT UK – a organização profissional que representa os cirurgiões especializados em otorrinolaringologia – concluiu que apenas 4% dos audiologistas se consideram bem informados sobre o TPA.
E, para os pacientes com 16 anos de idade ou mais, o Royal National ENT e Hospital Eastman é o único provedor de serviços de saúde do NHS que oferece total avaliação do TPA na Inglaterra. A lista de espera é de nove meses.
A professora Doris-Eva Bamiou realiza as avaliações naquele hospital. Ela afirma que isso se deve, em parte, ao tempo necessário para diagnosticar o TPA.
“É um serviço de alto custo, pois não se trata apenas de um audiograma”, explica ela. “O exame pode levar até duas horas e requer avaliações adicionais.”
“No caso de adultos, eu também os encaminho para avaliação cognitiva e, nas crianças, posso também precisar falar com um psicólogo educacional”, destaca Bamiou.
Particularmente depois da pandemia, o comportamento e o engajamento em relação a áudio e vídeo se alteraram. Isso se deve, em parte, aos novos produtos e à tecnologia, além do aumento da ansiedade em ambientes barulhentos após os lockdowns.
Crédito,Getty Images O Hospital Infantil Great Ormond Street, em Londres, verificou aumento da demanda por avaliações de crianças com dificuldade de ouvir certas palavras em ambientes com alto nível de ruído
Agora, é comum ver pessoas andando na rua com seus fones de ouvido com cancelamento de ruído e assistindo a vídeos online com legendas, mesmo ouvindo perfeitamente o som. Uma pesquisa do instituto britânico YouGov concluiu que 61% dos jovens de 18 a 24 anos preferem assistir à TV com legendas.
A audiologista Angela Alexander, proprietária da organização particular APD Support, é outra profissional que pede mais pesquisas sobre os impactos dos fones de ouvido com cancelamento de ruídos sobre o processamento auditivo, principalmente entre as crianças.
“Como será o futuro se não pesquisarmos esta relação?”, questiona ela. “Existem muitos pais e professores bem intencionados que acham que a resposta para os problemas das crianças com ruídos é usar plugues nos ouvidos ou fones com cancelamento de ruído.”
O chefe de audiologia do Hospital Infantil Great Ormond Street, em Londres, Amjad Mahmood, apoia a necessidade de mais pesquisas.
Ele destaca que houve um “aumento significativo da demanda” de avaliações na grande clínica de TPA do hospital, entre jovens com menos de 16 anos de idade – “especialmente com dificuldades observadas na escola”.
O tratamento do TPA pode fazer diferença positiva significativa. Alguns pacientes conseguem se recuperar completamente.
Os chamados exercícios de treinamento de “palavras no ruído”, em aplicativos para celulares, passaram a ser uma forma popular de praticar a extração da fala dentre o ruído de fundo.
Mas o treinamento pode variar e inclui também a prática com discriminação auditiva, como diferenciar sons separados em palavras parecidas, como “sessenta” e “seiscentos”.
Microfones e aparelhos auditivos de baixo ganho também podem ser fornecidos aos pacientes, para ajudá-los em certas situações, como reuniões ou o estudo em sala de aula. Mas os adultos fora do sistema educacional não têm direito a receber esses produtos do sistema de saúde britânico.
“Neste momento, eu posso ouvir um ventilador acima da minha cabeça, mas meu cérebro me diz que não preciso me preocupar com ele”, explica Alexander. O fenômeno que ele descreve é conhecido como análise de cenário auditivo.
“É desta forma que identificamos ameaças no nosso ambiente. Por isso, faz sentido para mim que houvesse um aumento da ansiedade se o cérebro de uma pessoa não recebesse mais essas indicações que ajudam a dizer o que é preocupante e o que não é.”
Para melhorar esta situação, Alexander sugere reduzir o tempo de uso dos fones de ouvido e adotar o modo de transparência, que pode amplificar o ruído de fundo. E também usar fones de ouvido que não fechem nem bloqueiem totalmente os ouvidos.
O professor da Faculdade de Ciências da Saúde e Reabilitação da Universidade de Queensland, na Austrália, Wayne Wilson, concorda que precisamos de mais pesquisas sobre essa possível relação.
Mas ele destaca que pesquisas controladas com muitas variáveis podem ser enganosas.
“O perigo se esconde nos detalhes”, explica ele. “A resposta provavelmente depende de quais sons, quais cenas, quais ruídos, qual cancelamento de ruído, qual período de cancelamento de ruído, qual a idade da criança etc.”
Sophie deve começar seu tratamento de TPA nos próximos meses. Ela está animada com o futuro.
“Quando eu e meu namorado vamos até um bar, às vezes saímos antes por causa do ruído”, ela conta.
“É bom saber que, depois deste tratamento, talvez eu consiga ir para lugares mais movimentados e lidar um pouco melhor com a situação.”
Deu em BBC
Descrição Jornalista
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