Energia. 03/02/2025 15:55
Os cientistas que perfuram os buracos mais profundos da Terra para obter água a 500 °C
Novas técnicas estão sendo desenvolvidas para obter energia limpa e sempre disponível.
Existem locais no nosso planeta onde a energia literalmente borbulha até a superfície.
A Islândia, por exemplo, possui mais de 200 vulcões e dezenas de fontes naturais de água quente. E não é difícil aproveitar essas fontes de energia.
Piscinas de água aquecida pelo fogo geotérmico que queima pouco abaixo da crosta terrestre estão espalhadas por todo o país. E gêiseres lançam no ar jatos de água fervente e vapor.
A Islândia aquece 85% das suas residências com energia geotérmica – e 25% da eletricidade do país também vêm de usinas de produção de energia que aproveitam o calor do subsolo.
Ter uma fonte de energia verde quase ilimitada, apenas aguardando para ser utilizada, é uma perspectiva bastante atraente. E a energia geotérmica oferece esta fonte, que é essencialmente inesgotável em todo o planeta.
É uma forma de energia que está sempre disponível, ao contrário da energia eólica ou solar. Afinal, o núcleo fundido da Terra e a degradação dos elementos radioativos naturais na crosta do nosso planeta emitem calor continuamente.
A quantidade de energia emitida pelo resfriamento da Terra é tão grande que o calor perdido no espaço todos os anos seria suficiente para atender à demanda total do planeta, multiplicada por muitas vezes. A questão é como fazer uso desta energia.
Atualmente, apenas 32 países em todo o mundo possuem usinas de energia geotérmica em operação. Existem menos de 700 usinas em todo o planeta. Somadas, elas geraram cerca de 97 TeraWatts-hora (TWh) em 2023.
Esta quantidade representa menos da metade da energia gerada por fontes solares, somente nos Estados Unidos. E está muito aquém das estimativas do potencial de contribuição que as fontes geotérmicas poderiam oferecer à oferta global de energia.
Estimativas indicam que as fontes geotérmicas poderiam fornecer cerca de 800 a 1400 TWh de eletricidade por ano até meados do século, mais 3.300 a 3.800 TWh anuais em aquecimento.
“A própria Terra detém o potencial de superar uma série de obstáculos na transição para o futuro da energia limpa”, destacou Amanda Kolker, gerente de programas geotérmicos do Laboratório Nacional de Energias Renováveis dos Estados Unidos (NREL, na sigla em inglês), ao publicar um relatório sobre o potencial da energia geotérmica em 2023.
Mas nem todos os países têm a mesma sorte da Islândia, que possui reservatórios de água quente sob temperaturas de cerca de 120 a 240 °C, perto da superfície e de fácil acesso. Em outras regiões do país, poços perfurados até 2,5 km de profundidade atingem temperaturas de até 350 °C.
A principal usina geotérmica da Islândia, por exemplo, perfurou poços experimentais com até 4,6 km de profundidade para ter acesso a fluidos superaquecidos a até 600 °C em Reykjanes, no sudoeste do país. E já ocorre extração diária de calor utilizando poços mais rasos, a temperaturas de cerca de 320 °C, para gerar 720 GigaWatts-hora (GWh) de eletricidade por ano.
Um motivo do baixo uso da energia geotérmica é o alto investimento inicial necessário para extrair essa energia. E atingir fisicamente essas fontes, em muitos casos, também está além do nosso alcance.
Para que outras partes do mundo possam empregar uma parte dessa fonte geotérmica de energia limpa, precisamos perfurar mais fundo, até atingir as temperaturas necessárias para gerar eletricidade ou fornecer aquecimento em larga escala para os bairros vizinhos.
Na Islândia, o imenso calor da Terra fica perto da superfície, o que facilita seu uso para aquecimento e produção de energia.
Em grande parte do planeta, as temperaturas aumentam, em média, 25 a 30 °C a cada quilômetro de profundidade na crosta da Terra.
No Reino Unido, por exemplo, a temperatura a cerca de 5 km abaixo da superfície é de cerca de 140 °C, segundo o Serviço Geológico Britânico.
Por isso, se perfurarmos até uma profundidade suficiente, poderemos atingir um ponto em que a temperatura da água ultrapassa 374 °C com pressão de mais de 220 bar (lembrando que um bar corresponde à pressão média na superfície da Terra, ao nível do mar).
Neste ponto, a água entra em um estado de energia intensa conhecido como supercrítico. Ela existe em uma forma que não é líquida nem gasosa – e, quanto mais quente e pressurizada ela for, mais energia ela contém.
De fato, um único poço geotérmico superquente poderia produzir cinco a 10 vezes mais energia do que o produzido atualmente pelos poços geotérmicos comerciais, segundo o NREL.
Mas um obstáculo importante é o fato de que as perfuratrizes giratórias convencionais, mesmo de diamante, são mal equipadas para escavar até as profundidades necessárias para termos acesso a estes níveis de temperatura.
No misterioso submundo profundo da geologia incerta, com temperaturas extremas e imensas pressões, os componentes de perfuração podem falhar com frequência. Com isso, surge uma batalha constante para evitar o bloqueio dos poços.
Em 2009, por exemplo, uma equipe do Projeto de Perfurações Profundas da Islândia, inadvertidamente, atingiu condições supercríticas ao perfurar uma câmara de magma do vulcão Krafla, no norte do país, a cerca de 2 km abaixo da superfície. Com isso, o vapor superaquecido emitido pelo poço ficou altamente ácido, dificultando seu uso.
As altas pressões e temperaturas envolvidas também dificultaram seu controle. O vapor precisou ser descarregado de forma intermitente por cerca de dois anos, até que uma válvula com defeito forçou o fechamento do poço.
A perfuração de poços profundos pode ser um trabalho caro e demorado.
O buraco mais profundo já cavado por seres humanos data da Guerra Fria, quando houve uma corrida entre as superpotências para perfurar a crosta da Terra o mais fundo possível.
A União Soviética conseguiu atingir 12,2 km de profundidade na rocha, com o Poço Superprofundo de Kola, na península de Kola, no Círculo Polar Ártico.
Os soviéticos levaram quase 20 anos para chegar a essa profundidade e o Poço de Kola, até hoje, é o ponto mais profundo que os seres humanos conseguiram atingir na Terra.
O NREL calcula o custo de perfurar um poço com 1 km de profundidade em cerca de US$ 2 milhões (cerca de R$ 11,7 milhões). Perfurar quatro vezes esta profundidade pode custar cerca de US$ 6 milhões a US$ 10 milhões (cerca de R$ 35,2 milhões a R$ 58,7 milhões), empregando a tecnologia atual.
Mas a energia geotérmica das profundezas da Terra pode trazer economia de custos considerável, em comparação com a energia geotérmica atual. Isso se deve às temperaturas e pressões mais altas a que podemos ter acesso em grandes profundidades na crosta terrestre.
Estudos indicaram que a energia geotérmica profunda poderia fornecer aquecimento para as comunidades a custos similares a outras formas de aquecimento, como o gás, e com menos emissões de gases do efeito estufa.
Em vista disso, pesquisadores e empresas pioneiras estão se voltando para novos tipos de perfuratrizes e técnicas de perfuração, para escavar alguns dos buracos mais profundos existentes. A esperança é trazer a energia geotérmica para regiões do mundo que nunca haviam sonhado com esta possibilidade.
Um exemplo é a empresa Quaise Energy, criada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos (MIT, na sigla em inglês). Ela pretende perfurar poços com até 20 km de profundidade para atingir temperaturas de 500 °C ou mais.
Para isso, eles estudam uma ferramenta que é fruto de anos de pesquisa sobre a energia gerada por fusão nuclear.
“Enquanto outros colocam pás na terra, nós estamos colocando micro-ondas no solo pela primeira vez”, declarou um dos fundadores da empresa, Matt Houde. Ele e seus colegas estão fazendo experiências com feixes de energia dirigidos com ondas milimétricas, que vaporizam até as rochas mais duras.
O feixe concentra radiação de alta potência – similar a micro-ondas, mas com frequência mais alta – sobre um segmento de rocha e o aquece até 3000 °C, para que ele derreta e vaporize.
Dirigindo o feixe de forma a perfurar a rocha, podemos criar poços sem a fricção e os fragmentos criados pelas técnicas de perfuração tradicionais.
“A perfuração por ondas milimétricas é um processo que pode ser operado, em grande parte, independentemente da profundidade”, explica Houde. “E a energia por ondas milimétricas também pode ser transmitida por meio de ambientes sujos e empoeirados.”
Esta tecnologia nasceu dos experimentos com plasma de fusão nuclear realizados pelo engenheiro Paul Woskov, do Centro de Fusão e Ciências do Plasma do MIT.
A energia dirigida por ondas milimétricas vem sendo empregada para aquecer o plasma em reatores de fusão nuclear desde os anos 1970. Mas, alguns anos atrás, Woskov encontrou outro uso para esta tecnologia.
Ele começou a usar feixes de ondas milimétricas gerados por um aparelho conhecido como girotron para fundir rochas.
Até o momento, a tecnologia só foi testada em laboratório, perfurando buracos rasos em amostras de rocha relativamente pequenas. Mas a empresa afirma que a tecnologia pode perfurar rochas a cerca de 3,5 metros por hora.
Embora seja uma técnica lenta, em comparação com os métodos tradicionais de perfuração, ela traz outros benefícios. Afinal, a “broca de perfuração”, nesta tecnologia, não mói fisicamente a rocha. Por isso, ela não deverá se desgastar, nem precisar ser substituída.
A Quaise Energy está agora no estágio final dos testes de laboratório e deve começar os testes de campo da tecnologia de ondas milimétricas no início de 2025. Mas transferir a tecnologia do laboratório para uma operação de perfuração em larga escala ainda será um desafio.
As ondas milimétricas “nunca foram empregadas no ambiente de alta pressão abaixo da superfície”, explica Woskov. “As mudanças causadas pela intensa interação entre matéria e energia aplicada à perfuração exigem uma nova curva de aprendizado.”
Já se demonstrou em laboratório que a energia dirigida das ondas milimétricas é capaz de perfurar a rocha sólida.
Paralelamente, a empresa GA Drilling, com sede na Eslováquia, estuda uma tecnologia diferente de perfuração com alto consumo de energia para escavar a crosta terrestre. Ela usa uma perfuratriz de pulsos de plasma, baseada em altas descargas elétricas muito curtas, que desintegram a rocha sem que ela derreta.
Este processo evita a criação de rocha fundida viscosa, que pode ser de difícil remoção e impedir a penetração contínua das brocas.
“Como o processo é muito rápido, com choques curtos desfazendo a rocha, não há tempo para a ocorrência de fusão. Por isso, a necessidade de retirar e substituir a broca é muito reduzida”, explica o presidente e CEO (diretor-executivo) da GA Drilling, Igor Kocis.
“O objetivo do nosso programa de desenvolvimento atual é [atingir] cinco a oito quilômetros – e, depois, mais de 10 km”, destaca ele. “Estas profundidades irão permitir acesso quase universal à energia geotérmica.”
As pesquisas sobre as perfuratrizes de pulso de plasma utilizam pulsos muito curtos de energia que desintegram a rocha, empregando gás ionizado a até 6000°C. Este processo está sendo estudado por um consórcio europeu, liderado pelo grupo Geothermal Energy and Geofluids (GEG), com sócios na Alemanha e na Suíça.
A GA Drilling também conta com a colaboração da professora de ciências da engenharia Konstantina Vogiatzaki, da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Seu objetivo é adaptar a matemática avançada, observando como os fluidos supercríticos podem ser controlados após a conexão das fontes de energia das profundezas da Terra a serem atingidas pela perfuração com plasma.
“Nosso trabalho é definir o sistema ideal de combustão para uma ferramenta de perfuração em larga escala, abrindo novos horizontes para o controle da combustão sob ultra-alta pressão, por meio da perfuração com plasma”, explica a professora.
Outros pesquisadores levam seus estudos para fora do nosso planeta, em busca de soluções para a perfuração na Terra.
Empresas de perfuração geotérmica estão adotando a mesma tecnologia desenvolvida para missões de exploração planetária sobre a superfície escaldante de Vênus, onde as temperaturas podem atingir 475°C.
O fabricante de circuitos eletrônicos Ozark Integrated Circuits, com sede em Fayetteville, no Estado americano do Arkansas, vem adaptando circuitos capazes de suportar temperaturas extremas para uso em sondas de perfuração geotérmica nas profundezas da Terra.
O Projeto de Perfuração Profunda da Islândia em Reykjanes, no sudoeste do país, já perfurou poços de até 4,6 km de profundidade.
Por outro lado, o NREL recorreu à inteligência artificial para analisar ambientes subterrâneos complexos e tentar encontrar os melhores locais de perfuração para buscar água em condições supercríticas. A intenção é também tentar prever e detectar falhas com as perfuratrizes, antes que elas causem problemas maiores.
E algumas empresas já estão escavando fundo no interior da Terra. A companhia geotérmica Eavor declarou à BBC que, em 2024, dois de seus poços verticais atingiram 5 km de profundidade em Geretsried, na Baviera (sul da Alemanha).
A empresa utilizou dois dos maiores equipamentos de perfuração terrestres da Europa, para criar uma instalação em escala industrial em Geretsried. A intenção é trazer o calor geotérmico para a superfície, fazendo circular água em um projeto de circuito fechado, batizado de Eavor Loop.
O sistema funciona como um radiador gigante, com a água fria do circuito sendo aquecida no subsolo e retornando à superfície, onde pode ser usada para gerar eletricidade e bombeada para as residências próximas, por meio de um sistema de aquecimento distrital.
A Eavor espera começar a gerar energia no local no primeiro semestre de 2025, segundo o presidente e CEO da empresa, John Redfern.
“Nossa tecnologia pretende perfurar até 11 km no futuro”, afirma a geóloga e uma das fundadoras da Eavor, Jeanine Vany. “Acredito que poderemos fazer progressos significativos para perfurar rochas superquentes nos próximos três a cinco anos.”
Sua técnica de circuito fechado também ajuda a evitar alguns dos problemas de contaminação que podem ocorrer quando a água superaquecida é extraída dos poços geotérmicos profundos, como descobriu o Projeto de Perfuração Profunda da Islândia em 2009.
A técnica também pode ajudar a reduzir as emissões de gases nocivos, como sulfeto de hidrogênio, que podem ser liberados pelos sistemas geotérmicos de circuito aberto.
Vany destaca ainda que a energia geotérmica profunda não precisa de muito espaço na superfície. Por isso, ela poderá se encaixar no ambiente urbano no futuro.
A energia dirigida das ondas milimétricas pode perfurar diferentes tipos de rocha, mas ainda é preciso realizar testes de campo.
Mas existem outros problemas a serem superados. Ainda não está claro, por exemplo, se será fácil fazer a manutenção dos poços geotérmicos profundos e evitar que eles fiquem bloqueados.
A corrida para fazer uso da energia geotérmica profunda também poderá trazer nova vida para as decadentes usinas energéticas movidas a combustíveis fósseis, em países que procuram eliminar suas fontes tradicionais de energia, grandes emissoras de carbono.
Transformar antigas usinas movidas a carvão em instalações geotérmicas poderá ser uma forma de oferecer uma nova vida aos geradores movidos a vapor. E também pode acelerar a construção de usinas geotérmicas, aproveitando as linhas de transmissão de eletricidade já existentes.
Paul Woskov, por exemplo, encontrou uma usina elétrica a carvão abandonada no interior do Estado americano de Nova York. Ele espera que essa instalação possa ser reaberta até o final da década, gerando eletricidade com o calor extraído das profundezas da Terra.
Certamente, haveria um lado poético nesta mudança. Uma usina elétrica que era movida a um combustível sujo retirado do solo seria reativada na revolução da energia limpa, com uma fonte de energia proveniente de locais ainda mais profundos.
A questão é se iremos conseguir perfurar o suficiente.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.
Deu em Correio Braziliense
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