Artigo 09/01/2025 06:40
A resiliência do burro- Por Jânio Vidal
Algumas palavras viram moda, são usadas à exaustão, ganham novos significados e de repente desaparecem, substituídas por outras, que em essência pouco diferem no que elas representam.
Algumas palavras viram moda, são usadas à exaustão, ganham novos significados e de repente desaparecem, substituídas por outras, que em essência pouco diferem no que elas representam. Resiliência é uma delas. Está na lista das dez mais. E foi numa cena cotidiana, que vi nesses dias, que a palavra resiliência ocupou minha mente, sem chance para nenhuma outra entrar na disputa: um burro puxando uma carroça carregada de entulhos, parado no sinal, à espera de uma chicotada para retomar seus passos, sem reclamar, após o sinal abrir. Quer prova maior do que essa, para mostrar que o burro é resiliente?
A moda da resiliência para os seres humanos enfatiza a capacidade de resistir, sofrer, enfrentar até a má sorte , mas não desistir de seus propósitos – outra palavra da moda – e se adaptar às mudanças: da automação à inteligência artificial. O burro, na sua versão jumento, não é menos resiliente. E nós o conhecemos melhor; afinal, ele faz parte de nossa história, nas mais diversificadas funções que tem atuado. Muitas delas em vias de serem descontinuadas, outra palavra em moda. Mas em todas elas, sem exceção, o jumento tem que mostrar sua resistência. No Nordeste ele habita o imaginário e a vida real de muitas pessoas.
Minha primeira experiência com jumentos foi na política, em 1965, na campanha eleitoral para governador do RN. Com 11 anos de idade, segui dezenas de alexandrienses montados em jumentos, ao lado do candidato Dinarte Mariz entrando em Alexandria. Essa ação de marketing havia sido usada em 1960, na campanha vitoriosa de Aluísio Alves. Em 1981, acompanhei Jomar Morais, no Rio de Janeiro, em entrevista que ele fez para a Revista Veja, com Roberto Albano, marqueteiro das duas campanhas. Foi de Albano a ideia de usar jumentos, numa encenação repetindo a cena bíblica de Jesus entrando em Jerusalém.
A segunda experiência foi em 1985, no último comício da campanha eleitoral para a Prefeitura de Natal. Participei de uma carreata, com buzinas e foguetões, da candidata Wilma de Faria. Mas fiquei surpreso com a carroceata de Garibaldi Filho, com centenas de jumentos puxando carroças lotadas de eleitores. Ele ganhou a eleição. Uma terceira experiência, mais carnavalizada, foi nos anos iniciais do Carnatal, quando sai no bloco Burro Elétrico. Algumas carroças puxadas por jumentos iam na frente dos foliões; mas, no quarto ou quinto ano, foram substituídas por um trio elétrico, permanecendo contudo o nome inicial.
Algumas outras cenas com jumentos, não menos importantes, ficaram na minha memória. Numa viagem que fiz ao interior, há pouco mais de dez anos, vi centenas deles, resilientes e abandonados, em busca de comida na beira da estrada. Tinham perdido suas funções como tração animal para as motocicletas e a mecanização. E vi também, algumas vezes, amontoados e aprisionados em currais, prontos para serem transportados e abatidos na Bahia. A pele seria exportada e transformada em medicamentos na China. Quanto a carne, permanece um mistério, que gera polêmicas, como a de uso em determinado tipo de charque.
A cena que descrevi no início desse texto não deveria mais ocorrer nas ruas de Natal, cidade que tem uma lei proibindo carroças ou qualquer tipo de transporte usando tração animal. O que fazer com os jumentos, que não se adaptaram a nenhuma outra função, desde a fuga de Jesus para o Egito? A ameaça de extinção, pelo menos na convivência com os humanos, é previsível. Questão de tempo. A humanização dos pets, especialmente de cães e gatos, mas também de porcos e aves, tem deixado o jumento à margem, negando a canção que o trata como irmão. Quem seria resiliente para adotar um burro?
Foto: Fator RRH
Descrição Jornalista