História 23/12/2024 19:26

Houve um ano em que o Natal foi cancelado; conheça a história

Quando os cristãos ingleses entraram em guerra devido a visões políticas e religiosas conflitantes, o feriado entrou no fogo cruzado e acabou banido da Inglaterra por 15 anos

O Natal de 1630 foi especial para a família real inglesa. A Inglaterra tinha acabado de selar um acordo de paz com a Espanha e havia a expectativa de que a rainha Henrietta Maria estivesse grávida.

O rei Charles I queria inaugurar uma era de paz e, para tanto, encomendou a criação de duas mascaradas (um tipo de espetáculo teatral em voga na época) para as Festas daquele ano.

Em uma das peças, Henrietta interpretou Clóris, deusa grega da primavera. Na outra, Charles foi o amante heroico que expulsou os inimigos de Calípolis, a cidade da beleza, conta a biógrafa Katie Whitaker no livro A Royal Passion:

The Turbulent Marriage of King Charles I of England and Henrietta Maria of France (“Uma Paixão Real: O Casamento Turbulento do Rei Carlos I da Inglaterra e Henrietta Maria da França”, sem versão publicada no Brasil).

A corte de Charles se acostumou a passar os natais com muita música, bailes, banquetes e espetáculos do tipo. Só que nem todos os britânicos aprovavam essa maneira de celebrar a data.

Na década seguinte, divergências tributárias e religiosas levaram o rei a dissolver o Parlamento. O impasse abriu o caminho para uma guerra civil entre as forças monárquicas e parlamentares, que tinham o apoio, justamente, de cristãos puritanos, que viam os hábitos religiosos do rei como ímpios e decadentes.

Em 1645, o Parlamento, que estava vencendo a guerra e controlava a maior parte do país, decretou que o Natal, assim como a Páscoa e outras datas religiosas, não seriam mais celebrados. A medida fazia parte de um pacote com uma série de leis moralizantes que atingiriam o auge quatro anos depois.

Em 1649, a guerra terminou, os parlamentaristas venceram e a monarquia inglesa encontrou seu fim de maneira trágica, com a cabeça de Charles I decepada. A Inglaterra se tornou uma república, comandada por Oliver Cromwell.

O caminho estava aberto para uma “reforma puritana dos costumes”, como explica o historiador britânico Bernard Capp no livro England’s Culture Wars: Puritan Reformation and its Enemies in the Interregnum, 1649-1660 (“Guerras culturais da Inglaterra: a Reforma puritana e seus inimigos no interregno, 1649-1660 ”, sem versão no Brasil), que trata desse período da história inglesa.

“Eles queriam reformar a Igreja e seus serviços, impor o sabá [dia de descanso], suprimir o Natal e espalhar o evangelho. Buscavam impor uma disciplina moral severa para regular e reformar o comportamento sexual, práticas de bebida, linguagem, vestimenta e atividades de lazer que iam de música e peças de teatro a futebol.”

A lista era longa, porque as formas de entretenimento na Inglaterra também não eram poucas: tradições pagãs para celebrar a primavera, cervejarias, corridas de cavalos, brigas de galo e outras atividades sangrentas, como bear-baiting e bull-baiting (que envolviam ursos, touros e cães) também foram perseguidos.

Em Londres, soldados arrancavam as decorações de Natal das ruas e forçavam os lojistas a abrirem as portas no feriado.

Por isso, há quem diga que foi Cromwell o responsável pelo banimento do Natal no país, mas a medida é de antes de ele ter subido ao poder.

A Inglaterra havia se separado da Igreja em Roma no século anterior, criando o anglicanismo. Mas as práticas religiosas nacionais ainda tinham muita influência do mundo católico – e de outras tradições. Nesse contexto, o puritanismo se desenvolveu na nação, com o intuito de afastar o anglicanismo desses “desvios” e concluir a Reforma Protestante.

Caldeirão de influências “impuras”

Os puritanos tinham um caminhão de argumentos para se opor ao Natal. Diziam que a festa e a maneira como ela era celebrada não tinham nada a ver com o nascimento de Jesus. Bem, errados eles não estavam.

Primeiro, diziam que não há nenhuma passagem bíblica que mencione o 25 de dezembro, o que é verdade. “Os puritanos gostavam de dizer que, se Deus quisesse que a Natividade de Jesus fosse celebrada,

Ele teria dado alguma indicação de quando esse aniversário ocorreria (eles também argumentavam que o clima na Judeia no fim de dezembro era simplesmente frio demais para os pastores viverem ao ar livre com seus rebanhos)”, diz o historiador americano Stephen Nissenbaum no livroThe Battle for Christmas:

A Cultural History of America’s Most Cherished Holiday (“A Batalha pelo Natal: Uma História Cultural do Feriado Mais Prezado da América”, ainda não disponível no Brasil).

cristianismo só instituiu oficialmente a festa do Natal no século 4 e a escolha pelo 25 de dezembro não se deveu a motivos religiosos, mas simplesmente porque a data marca, aproximadamente, o solstício de inverno no Hemisfério Norte, lembra Nissenbaum. Era uma maneira de pegar carona na popularidade da festa romana da Saturnália a fim de tentar emplacar o Natal.

Ou seja, desde sempre o feriado cristão teve influências de outras tradições. Quando os povos germânicos adotaram o cristianismo, por exemplo, o Natal se mesclou ao Yule, festividade pagã de inverno.

A popularidade tremenda que a festa ganhou no Ocidente no século 20 pode dar a falsa sensação de que ela “sempre esteve aí”. Mesmo nos Estados Unidos, um dos países que mais contribuíram para a atual noção que temos do Natal, a data passou praticamente batido nos primeiros séculos de colonização.

Em alguns estados americanos, só em meados do século 19 o Natal foi reconhecido como um feriado, segundo Nissenbaum. Por muito tempo, a festa era ilegal e passível de multa – fruto da influência dos puritanos na colonização dos EUA.

Na Inglaterra, porém, a proibição não se deu facilmente. O povo amava o Natal e estava disposto a lutar por ele.

A batalha do Natal

“As notícias falam de uma grande insurreição em Canterbury para manter o Dia de Natal”, escreveu o político do século 17 John Rushworth em seus relatos sobre os anos de guerra civil. 

A multidão raivosa, segundo o texto, vandalizou casas, bloqueou vias e capturou armas. Tudo porque o prefeito, “seguindo a portaria do Parlamento contrária a tais vãs celebrações”, mandou prender um lojista que se recusou a trabalhar no 25 de dezembro e decidiu fechar as portas.

Outras cidades protestaram contra o banimento do Natal em 1647, dando novo gás às forças monárquicas, que se lançaram em uma segunda guerra civil. A lei puritana instituía que se tratava de um dia comum e todos deviam trabalhar normalmente, mas muitos se recusaram a abdicar do Natal.

Além disso, a medida trouxe consequências que os puritanos não imaginavam. O banimento puritano deixou o Natal menos religioso, pois muitos não só não iam ao trabalho como tratavam a data como um motivo para comer e beber em segredo, segundo Capp.

Cromwell morreu em 1658 e pouco depois a experiência republicana na Grã-Bretanha chegou ao fim. Em 1660, o filho do rei decapitado assumiu o trono como Charles II e, com ele, velhas tradições voltaram.

O Natal retornou ainda mais forte, especialmente nos símbolos não-cristãos, com muita comilança, música e jogatina.

A repressão puritana foi um tiro pela culatra, mas seu discurso segue firme até hoje, pelo menos entre setores do cristianismo que veem pouca religiosidade nas tradições natalinas. Mas, a história ensina, a data sempre foi essa mistureba de elementos amada por muitos, nem tanto por outros.

Deu em Galileu

Ricardo Rosado de Holanda


Descrição Jornalista