O local em questão é a Vila da Conceição, ocupação portuguesa da época em que o Brasil era colônia. Ela ficava nos arredores do Forte Príncipe da Beira, próximo à cidade de Costa Marques (RO), na divisa com a Bolívia.
Só que passou séculos desaparecida. Isso porque o local é alvo de inundações frequentes e, com as mudanças de relevo e novas ocupações, os vestígios acabaram sumindo na paisagem.
Na região, onde se acreditava existir apenas sítios arqueológicos indígenas, o Lidar revelou um sistema de ruas e estruturas do século 18, onde havia uma série de edificações. Segundo os pesquisadores, podem ser marcas de casas, mas também oficinas, teares, locais para processar alimentos.
“A gente não tinha conhecimento de geoglifos [marcas geométricas antigas] na área. Agora, temos 11”.
A descoberta prova como o Lidar, acrônimo em inglês para “detecção e alcance de luz”, tem melhorado a vida de arqueólogos que trabalham em locais mais isolados.
A tecnologia de mapeamento remoto funciona a partir de um sensor que emite pulsos de luz. São dezenas de milhares de pontos por metro quadrado, o que permite escanear com precisão até superfícies mais acidentadas.
Quando batem em um tronco, por exemplo, os feixes de luz voltam ao equipamento com uma velocidade específica.
Ao baterem em uma pedra ou no solo, a velocidade de retorno é outra. Isso permite dizer o que é aquele material e a qual distância ele está. Bem como estimar o ano em que foi extraído ou descobrir o tamanho de construções escondidas, por exemplo.
É um prato cheio para a arqueologia.
A partir da união de todas essas informações, é possível fazer o que se chama de nuvem de pontos. Essa nuvem de pontos, então, gera modelos digitais de topografia. A precisão é de 1 centímetro, o que permite mostrar características invisíveis do terreno, revelando detalhes de uma série de estruturas escondidas sob a vegetação.
“É como se eu pudesse chegar a um local totalmente coberto por floresta e a puxasse para cima, como um tapete, dando uma espiada no que há embaixo”, explica Zimpel.
O Lidar deu mais detalhes sobre estruturas bem conhecidas pelos quilombolas da região – como o conjunto de morros de pedra apelidado Labirinto, de onde os portugueses tiravam materiais. Outra possibilidade foi usar a tecnologia para procurar áreas descritas em mapas dos séculos 18 e 19.
Esta região de Rondônia conta com vários mapas históricos porque era estratégica para o governo português. Pouco antes do Tratado de Madri (1750), a Espanha invadiu o lado brasileiro e fundou uma missão. Portugal retomou o local, e construiu o Forte Nossa Senhora da Conceição. Mas os conflitos não terminaram.
Devido à tensão militar, tanto Portugal quanto Espanha começam a fazer construções dos dois lados da fronteira.
O problema é que o primeiro forte estava em uma área que alagava regularmente. Isso motivou Portugal a criar uma segunda fortaleza, o Forte Príncipe da Beira, onde não havia alagamentos frequentes.
O Forte Nossa Senhora da Conceição foi destruído, e o material serviu para colocar de pé o forte substituto – cujas ruínas são visíveis até hoje.
De acordo com Zimpel, as cidades dos arredores serviam a essa operação militar. Documentos permitem estimar que tais cidades, como a vizinha Lamego, – cujos traçados das ruas foram recém-descobertos pelo Lidar –, tinham cerca de 300 pessoas.
A população era composta essencialmente por escravizados, sejam africanos, afro-brasileiros ou indígenas.
Por enquanto, o conhecimento sobre as estruturas da região só existe em relação ao lado brasileiro. “Precisamos encontrar uma parceria boliviana para trabalhar do outro lado”, diz o pesquisador.
A iniciativa que trouxe as descobertas na região do Forte Príncipe da Beira é fruto do Projeto Amazônia Revelada, que está usando o Lidar para expandir o conhecimento sobre o passado amazônico.
A ideia é não apenas encontrar patrimônios arqueológicos, mas também contribuir para sua preservação. Afinal, bens arqueológicos são tombados, e, por isso, protegidos por lei. Ameaças como o desmatamento e criação extensiva de gado avançaram nos últimos anos. Com a maior visibilidade, pretende-se criar uma camada extra de proteção em territórios tradicionais.
“Temos muita história por debaixo da Terra, que está toda escondida. Não podemos deixar que invadam nossa região”, resume o guia Santiago Cardoso, morador da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira que participou dos estudos.
Pesquisadores preparam um relatório sobre os achados para um registro no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O documento será base para um artigo científico, que será publicado até o início de 2025.
“Há várias gerações, esses quilombolas pesquisam e preservam esse patrimônio. Como eles não têm uma visão acadêmica, esse conhecimento fica [só] lá”, explica Zimpel.
Apesar de o Lidar ser usado há décadas em sítios arqueológicos pelo mundo, é a primeira vez que a tecnologia é aplicada em larga escala no Brasil. E o motivo é, sobretudo, financeiro. Para cobrir áreas muito extensas, é necessário uma aeronave. Tem outra: um sensor Lidar pode custar 750 mil.
A tecnologia se tornou um pouco mais acessível nos últimos anos. Com um sensor a bordo de um drone, já é possível mapear até 100 hectares por dia – área que, obviamente, é muito maior com um avião.
“Ao decorrer do tempo, algumas inovações mudaram paradigmas [da arqueologia]. A primeira foi a fotografia, que trouxe uma camada a mais de informação.
A segunda, a datação por Carbono 14, que permitiu amarrar os dados a uma cronologia. Depois, vem a informatização, com a criação de bancos de dados e conhecimentos estatísticos. E, depois disso, temos a chegada do Lidar”, diz Zimpel.
De acordo com um levantamento de Giacomo Vinci, da Universidade de Pádua (Itália), a maior quantidade de dados abertos permitiu que houvesse mais estudos de caso e projetos em larga escala com Lidar nos últimos 20 anos na Europa e na América do Norte.
Por outro lado, as características das vegetações tropicais são um cenário melhor para o Lidar mostrar todo o seu potencial do que as regiões temperadas, onde as ruínas estão, em geral, mais expostas e menos preservadas.
Veja abaixo outros casos que mostram como o Lidar está mudando a maneira como enxergamos o passado.
AMAZÔNIA EQUATORIANA TINHA CIDADES HÁ 2,5 MIL ANOS
Nos últimos anos, arqueólogos têm descoberto mais evidências de que a Amazônia, antes da chegada dos europeus, não era uma imensidão inóspita habitada por grupos pontuais de caçadores-coletores.
Pirâmides e estradas que percorrem o continente mostram que havia sociedades complexas na América Latina além daquelas conhecidas nos Andes e na Mesoamérica.
E um novo estudo no Equador provou que isso já era realidade há mais tempo do que se supunha: pelo menos 2,5 mil anos, mais de mil anos antes de outras evidências conhecidas de culturas complexas na região.
Escavações desde os anos 1990 mostravam que o Vale do Upano – uma região que jamais foi colonizada mas que, nos últimos tempos, também entrou na mira da expansão da pecuária – abrigava essas antigas cidades.
Mas toda a complexidade só veio à tona a partir de 2015, quando uma fundação governamental decidiu investir no local. Os trâmites burocráticos atrasaram o trabalho para 2020. Então, foi somente nesta década que os frutos surgiram.
Em janeiro de 2024, um grupo de cientistas – do qual faz parte Eduardo Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnografia da USP e líder do Projeto Amazônia Revelada –, anunciou a identificação de 15 assentamentos em uma área de 300 quilômetros quadrados.
Cada um é recheado de casas e templos, separados em ruas e bairros, com estradas conectando tudo. São mais de 6 mil plataformas, distribuídas em padrões geométricos e interligadas.
Ainda não está claro o quão complexas eram essas sociedades nem o tamanho de sua população, mas havia cidades grandes: Kilamope, um dos maiores assentamentos, tem área comparável à do Planalto de Gizé, no Egito.
AS RUÍNAS ARQUEOLÓGICAS AMAZÔNICAS, EM NÚMEROS
Um estudo publicado em 2023 estima que existam entre 10 mil e 23 mil ruínas soterradas na Amazônia. Geoglifos começaram a ser registrados, ainda que de forma pontual, desde os anos 2000.
Segundo o geógrafo Vinicius Peripato, doutor em sensoriamento remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e autor do artigo, testes anteriores já indicavam a possibilidade de haver tantas estruturas.
Os dados colhidos pelo Lidar, inicialmente, tinham aplicação ecológica, como estimar estoques de carbono. Por isso, sua resolução (medida em pulsos por metro quadrado) era menor.
O grupo então desenvolveu um método para aumentar a resolução do Lidar e identificar leves alterações topográficas. Assim, encontrou 24 novas estruturas.
Em seguida, Peripato desenvolveu um modelo matemático para caçar geoglifos, cruzando dados do Lidar em 5,3 mil quilômetros quadrados com as informações de mais de 900 estruturas já descobertas.
Assim, calculou que, sob a floresta, existam pelo menos 10.275 ruínas pré-colombianas.
Além de reforçar a ideia de que havia muita gente vivendo na Amazônia há mais de 1,5 mil anos, o estudo ajuda a entender como a floresta se adaptou e se modificou com essa antiga presença humana, o que pode ser essencial para compreendermos o impacto a longo prazo do desmatamento contemporâneo.
Peripato também afirma que descobertas nos países amazônicos poderiam conter o desmatamento ao vinculá-las ao legado dos povos originários. “Confirmaria, com provas materiais, a presença deles por toda a floresta ao longo dos séculos, refutando a tese do marco temporal e abrindo caminho para novas demarcações de terras indígenas”, diz.
MAIOR TEMPLO DO MUNDO É AINDA MAIOR DO QUE SE IMAGINAVA
Não são apenas as florestas das Américas que têm se mostrado terreno fértil para as descobertas do escaneamento a laser. É uma revolução que permite descobertas até em sítios bastante conhecidos.
No sudeste asiático, o Lidar também revelou tesouros soterrados. Em 2015, um estudo da Universidade de Sydney, na Austrália, mostrou que Angkor Wat, hoje o símbolo e maior destino turístico do Camboja, tem áreas inteiras até então desconhecidas.
São casas, piscinas, torres e uma estrutura em espiral com 1,5 quilômetro de extensão. Angkor Wat, que já era considerado o maior templo do mundo, ficou ainda maior.
Nos anos seguintes, o time do arqueólogo australiano Damian Evans fez mais descobertas. Em 2016, ele anunciou novas cidades inteiras escondidas debaixo da selva, que tornar a civilização khmer, que viveu seu auge há cerca de 900 anos, o maior império da Terra à época.
Em 2019, os pesquisadores conseguiram mapear, com um detalhamento até então inédito, Mahendraparvata, a antiga capital khmer, construída mais de 300 anos antes de Angkor Wat.
ENCONTRADA SEGUNDA MAIOR CIDADE MAIA – E OUTRAS “CIDADES MÉDIAS”
A descoberta da segunda maior cidade maia que se tem notícia, divulgada em outubro de 2024, aconteceu por acaso. E foi obra do trabalho de um estudante de doutorado: Luke Auld-Thomas, da Universidade de Tulane (EUA), vasculhava a internet quando se deparou com dados de Lidar sobre ocupações maias.
Esses dados apontaram para vestígios de uma cidade, batizada Valeriana, em meio à floresta densa no estado de Campeche, no sudeste do México.
Trata-se de um complexo com pirâmides, arena de jogos, anfiteatros e ruas conectando diferentes lugares. A cidade chegou a contar com uma população de até 50 mil pessoas, entre os anos 750 e 850 d.C., e só perde em densidade para Calakmul, maior sítio arqueológico maia da América Latina.
O Lidar também deu detalhes sobre “cidades médias” do império maia que não eram conhecidos anteriormente. Em 2022, o arqueólogo Francisco Estrada-Belli, a arquiteta Laura Gilabert-Sansalvador e outros pesquisadores cruzaram estudos anteriores com os dados levantados por Lidar em uma área de 60 mil quilômetros quadrados.
Estavam em busca de sinais de casas com telhados abobadados, que seriam indicativos de residências da elite maia.
Havia suspeitas quanto ao que seriam simples cabanas de camponeses e o que seriam casas da nobreza: enquanto algumas estruturas tinham apenas pisos de gesso (o que significa que, antigamente, eram cabanas de madeira e palha, materiais que já se desintegraram), outras estavam cercadas por restos de grossas paredes de pedra.
O time reuniu dados de 451 ruínas do tipo, comparou com as imagens de Lidar, que revelaram 111 mil estruturas sob a selva da Mesoamérica, e concluiu que essas casas abobadadas da elite não ficavam apenas nas maiores cidades.
Também estavam em pequenas comunidades rurais, que tinham praças, mercados e se conectavam aos grandes centros por meio de estradas. Ou seja, não eram vilas isoladas.
A descoberta indica que os maias eram mais resistentes do que se pensava contra secas ou derrotas militares. Em vez de colapsarem em um espaço de décadas, as cidades maiores levaram até 200 anos para serem abandonadas de vez, porque contavam com essa rede de núcleos urbanos menores, o que aumentava a flexibilidade política e social.
Foi o caso de uma pirâmide encontrada em Tikal, na atual Guatemala: mesmo dentro de uma cidade maia, ela não é maia: seria uma espécie de embaixada de Teotihuacan, potência localizada no México que, mais tarde, conquistaria Tikal.
MURALHAS NA GRÃ-BRETANHA NÃO SEPARARAM ROMANOS DE CELTAS
Do outro lado das antigas fronteiras romanas, o Lidar tem ajudado pesquisadores a entender melhor a Antiguidade na Grã-Bretanha. O laser revelou trechos desconhecidos da Muralha de Antonino, construída na Escócia por volta de 140 d.C., e de assentamentos próximos à Muralha de Adriano, construída na Inglaterra em 122.
Nos últimos anos, muitos terabytes de dados colhidos pela agência governamental responsável pelo meio ambiente ajudaram o trabalho de pesquisadores profissionais e também dos chamados cidadãos cientistas.
É o caso do engenheiro David Ratledge, que estuda estradas romanas há mais de 50 anos e descobriu alguns trechos em Lancashire. “Antes só tínhamos imagens aéreas.
Hoje, o uso de dados de Lidar é um grande sucesso em todo o país. As imagens são capazes de mostrar claramente os restos sobreviventes da estrada, terraços e valas”, diz.
Além disso, a tecnologia permitiu uma nova visão sobre a conquista romana da Grã-Bretanha: nem sempre a realidade foi de enfrentamento e violência. Já se sabia que a muralha alimentava uma rede de bens e serviços que beneficiavam invasores e populações locais.
Mas a descoberta de assentamentos da Idade do Ferro de centenas de anos antes da chegada dos romanos indica que houve relações de trabalho intensas, pois não há sinais de batalha.
Dezenas de milhares de estruturas indefesas indicariam que essas comunidades prosperaram em um ambiente de relativa paz.
Para complicar ainda mais o entendimento desse período, a descoberta de um aqueduto romano ao norte da Muralha de Adriano e perto de uma vila nativa seria uma prova de que essas terras já haviam sido conquistadas.
Ou seja, a ideia de que a muralha servia para separar os “civilizados”, ao sul, dos “selvagens”, ao norte, pode cair por terra, porque até áreas além da muralha estavam sob controle romano.
AQUEDUTOS ROMANOS NO SEMIÁRIDO DO ORIENTE MÉDIO
Abandonada no século 8 e redescoberta em 1806, Jerash é uma joia arquitetônica. Suas ruínas romanas, tidas como as mais bem preservadas do Oriente Médio, lhe renderam comparações a Pompeia.
Em 2018, arqueólogos da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, descobriram que essa cidade, na atual Jordânia, é ainda mais formidável – mas está ameaçada
Deu em Galileu