Judiciário 19/03/2024 08:58

A incompetência do STF para julgar pessoas comuns pelos atos de 8 de janeiro

Dito isso, o ponto central é: o Supremo Tribunal Federal tem competência para processar e julgar pessoas comuns, sem foro por prerrogativa de função, em ações penais originárias?

É sabido que o Supremo Tribunal Federal está envolvido institucional e emocionalmente nos casos que envolvem os atos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023. Isso porque a própria sede do STF foi alvo de vandalismo e destruição.

A conclusão que se chega é que o Supremo quer, deseja e vê necessidade de punir supostos envolvidos nos atos daquele dia; a pergunta que fica é: a que preço? E a resposta coerente deve ser: não a qualquer preço, no caso, o preço da legalidade e da Ordem Jurídica.

Dito isso, o ponto central é: o Supremo Tribunal Federal tem competência para processar e julgar pessoas comuns, sem foro por prerrogativa de função, em ações penais originárias?

Antes de responder que não, é preciso examinar qual o entendimento da corte para proceder da forma que está procedendo.

Conforme o artigo 102, b da Constituição Federal:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;

Desde o inquérito 4781, o primeiro da Corte, e que foi instaurado para apurar suposta disseminação de fake news e ataques aos integrantes do STF, vieram outros inúmeros inquéritos, tais como: 4828, 4923, 4919, 4918, 4917 etc…

Em alguns desses inquéritos figuram parlamentares sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, o que dá ao Supremo poderes de investigação sobre eles por disposição do art. 43 do seu próprio regimento interno que diz:

art. 43 – Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.

§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.

§ 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.

A competência para instaurar inquérito sobre crimes ocorridos nas dependências do STF foi referendada pela ADPF 572, que reconheceu a constitucionalidade das normas regimentais que dispõem sobre o Poder de Polícia da Corte.

Que o Supremo pode investigar delitos ocorridos nas suas dependências não se discute, mas pode o mesmo Supremo julgar pessoas sem prerrogativa de foro, em ações penais que se originam na Corte?

A justificativa que vem sendo dada é de que as ações envolvendo pessoas comuns emanam de inquéritos que envolvem pessoas com prerrogativa de foro (parlamentares), logo, os princípios da conexão e continência (art. 76 e 77 do CPP) atraem a competência da Corte, como previsto na Súmula 704:

Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

A aparente conexão e continência parece operar de plano e justificar a competência do STF para o caso, contudo, é preciso analisar que a competência para julgamento do STF em casos de delitos envolvendo pessoas com prerrogativa de foro só se aplica quando o delito apurado está relacionado com a função desempenhada, como decidido na Questão de Ordem na Ação Penal 937:

“O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”(STF, Q.O na AP 937, Rel. Min. Roberto Barroso, Dje 11.12.18)

No julgado referido, o relator fez o seguinte destaque:

a conexão do crime imputado com o exercício da função, embora não seja requisito expresso textualmente na Constituição, é requisito inerente à prerrogativa institucional, necessário para legitimar o regime especial.

Se há parlamentares envolvidos nos inquéritos de modo a justificar a atração da competência do Supremo pela conexão e continência, então precisamos admitir que os delitos imputados, entre eles o de abolição do Estado Democrático de Direito, são atos relacionados às funções parlamentares, o que seria um manifesto contrassenso. Nesse ponto, são os apoios doutrinários:

Se o crime é cometido durante o exercício do mandato, somente se aplica o foro especial se for relacionado às funções desempenhadas. Assim, fica superado o entendimento generalista de que todos os crimes cometidos durante o mandato ensejariam o foro especial. (Pimentel, Fabiano. Processo Penal, D’Plácido, 2022, p.426)

“se o foro por prerrogativa de função não constitui um privilégio estamental ou corporativo, mas uma proteção outorgada às pessoas que desempenham certas funções, em prol do interesse público, não há porque estendê-lo para fatos estranhos ao exercício destas mesmas funções ” (Daniel Sarmento: https://www.jota.info/opiniaoeanalise/artigos/constituicaoesociedade-4-02112014)

Foi com base nesse entendimento restritivo que o próprio STF passou a limitar a abrangência da imunidade parlamentar:

A imunidade parlamentar pressupõe nexo de causalidade com o exercício do mandato. Declarações proferidas em contexto desvinculado das funções parlamentares não se encontram cobertas pela imunidade material. ( PET 7.174, red. do ac. min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T, DJE de 28-09-2020.)

Nesse tom, importante lembrar que a referida imunidade não se estende ao corréu, conforme Súmula 245:

A imunidade parlamentar não se estende ao co-réu sem essa prerrogativa.

Pertinente destacar decisão da Suprema Corte adotada no AgR/DF no inquérito 4619, em que o relator Min. Luiz Fux, determinou remessa do feito à justiça comum, por se tratar de delito estranho ao mandato. No caso, tratava-se de delito de apropriação indébita:

” é forçoso concluir que os fatos não se relacionam ao exercício do mandato de Deputado Federal de ODAIR JOSÉ DA CUNHA, razão pela qual não incide a competência constitucional do Supremo Tribunal Federal para seu processo e julgamento. “

A conclusão que logicamente se chega é a de que os delitos imputados aos réus pelos fatos de 8 de janeiro não tem nexo com a função parlamentar, de modo que nem eles e nem os parlamentares deveriam ser alvos de ações penais originárias na Corte e o inquérito que originou a ação penal deveria ter sido remetido ao MPF para proceder ou não a denúncia no juízo Federal de Brasília (art. 70 CPP).

Por fim, precisamos ter honestidade intelectual para indicar que o desmembramento das ações, nesses casos, submete-se à analise da conveniência (art. 80 do CPP) sendo atribuição do relator decidir monocraticamente:

A decisão pela manutenção da unidade de processo e de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal ou pelo desmembramento da ação penal está sujeita a questões de conveniência e oportunidade, como permite o art. 80 do Código de Processo Penal. ( Inq 3.412 ED, rel. min. Rosa Weber, 1ªT, j. 11-9-2014, DJE 196 de 8-10-2014.)

O que ocorre, na prática, é que cada relator, atento às peculiaridades do caso concreto e no que diz respeito à conveniência da instrução e ao princípio da razoável duração do processo, decide monocraticamente se procede ou não ao desmembramento. ( Inq 3.507, rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 8-5-2014, DJE 112 de 11-6-2014.)

Dito isso, importante destacar que um dos votos vencidos na questão de ordem na ação penal 937 foi justamente o Min. Alexandre de Moraes, relator dos casos envolvendo os fatos do dia 8 de janeiro, e para quem a competência do Supremo para julgar parlamentares incide a despeito da conexão do delito com a função.

Ficou vencido na oportunidade, mas está fazendo valer seu entendimento na prática… convenientemente.

Deu em JusBrasil

Ricardo Rosado de Holanda


Descrição Jornalista