Deu no blog de Djacir Dantas
Passeatas são o assunto do momento. Começaram como uma passeata contra o aumento de passagens nos transportes públicos, mas gradativamente se tornaram um instrumento para múltiplos protestos, que incluem o recente desatino da “cura gay”, as já tradicionais queixas contra os gastos da Copa do Mundo e seu legado incerto, os crônicos problemas da segurança pública, saúde e educação e, o que parece motivar mais pessoas, segundo pesquisa do Datafolha, a corrupção na política.
Já tivemos grandes passeatas no Brasil, para fins os mais diversos. A favor do golpe de estado que iniciou a ditadura, por exemplo, e que receberam o pomposo nome de “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” e, muitos anos depois, as marchas pelas “Diretas já”, na luta para encerrar aquela mesma ditadura. As marchas dos “caras-pintadas” contra o falso “caçador de marajás”, Fernando Collor. E uma insólita “passeata contra a guitarra elétrica”, também chamada “passeata pela música brasileira”.
Foi em 1967, em São Paulo. Esse equívoco reuniu grandes nomes da música brasileira, como Elis Regina, Geraldo Vandré, Edu Lobo, Zé Keti, MPB-4 e, o mais surpreendente, Gilberto Gil. O motivo alegado era o de defender a “verdadeira” música brasileira contra a invasão do rock. Os motivos ocultos incluíam desde interesses comerciais e ciúmes profissionais a razões políticas.
Nessa época, a TV Record obtinha grande audiência com seus programas musicais, que exibia em diversos dias da semana. O carro-chefe era “O fino da bossa”, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues e com a participação do Zimbo Trio. Vendo o interesse crescente dos jovens pela nascente “Jovem Guarda”, a mesma TV Record convidou Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderleia para conduzirem um programa para este público. O programa foi colocado no domingo à tarde, em dia e horário que geralmente dava baixa audiência, mas para surpresa dos programadores logo se tornou um sucesso.
Em janeiro de 1967, Elis Regina viajou de férias por três meses. Quando voltou, descobriu que os índices de “O fino da bossa” estavam ao rés do chão, ao contrário dos números estratosféricos do programa da jovem guarda. Em uma reunião com Paulo Machado de Carvalho, decidiram que a fórmula do programa tinha se esgotado e necessitava mudanças.
O substituto seria a “Frente Única da Música Popular Brasileira”, título inspirado na “Frente Ampla”, um grupo político organizado por Carlos Lacerda, depois que suas ambições de ser candidato a presidente da república foram frustradas pelo regime militar que ajudara a colocar no poder, e incluía antigos adversários como Juscelino Kubistchek e João Goulart. O objetivo da “Frente Ampla” era enfrentar a ditadura militar.
A “Frente Única da MPB” reunia Elis Regina, Wilson Simonal, Geraldo Vandré e Gilberto Gil. Cada um deles seria o capitão de um programa, que se alternariam, nas noites das quartas-feiras. Seu inimigo: o rock, uma arma do imperialismo para corromper a música brasileira e a juventude brasileira.
Na época da ditadura, um dos meios de expressão do repúdio era a música popular. O sucesso da Jovem Guarda, com letras que passavam longe dos problemas sociais e políticos do Brasil era visto como uma ameaça. Os jovens passariam a cantar músicas “alienadas da realidade”, que apregoavam “quero que você me aqueça nesse inverno, e que tudo mais vá pro inferno” no lugar de “o terreiro lá de casa/não se varre com vassoura/varre com ponta de sabre/bala de metralhadora.”
O culpado por isso seria a invasão da música americana e britânica (Sgt. Pepper’s tinha sido lançado semanas antes) e o instrumento da ocupação seria a guitarra elétrica, que deveria naturalmente ser banida da vida musical brasileira. Um aviso foi afixado nos bastidores do Teatro Paramount: “Atenção, pessoal, o Fino não pode cair! De sua sobrevivência depende a sobrevivência da própria música brasileira moderna. Esqueçam quaisquer rusgas pessoais, ponham de lado todas as vaidades e unam-se todos contra o inimigo comum: o iê-iê-iê.”
A passeata ocorreu no dia 17 de julho de 1967. Saiu do Largo de São Francisco e terminou em frente ao Teatro Paramount, na Av. Brigadeiro Luis Antônio. Não por acaso, onde os programas da Frente Única da MPB eram gravados. Reuniu cerca de 400 pessoas. Desnecessário dizer que foi inócua e a maioria dos artistas envolvidos estaria, não muito tempo depois, usando guitarras em suas apresentações e gravações. E como ideia fixa quem tem é doido, não demorou muito para que alguns percebessem a mancada e rapidamente reabilitassem a guitarra.
Gilberto Gil foi o mais rápido. Um admirador declarado dos Beatles, disse que participou constrangido, atendendo a um pedido de Elis Regina, por quem nutria certa paixão e a quem não soube dizer não. Três meses depois, estava muito serelepe no IV Festival da MPB, em companhia dos Mutantes, que detonavam suas guitarras em “Domingo no Parque.” Para indignação da colega Elis.
Que só resistiu um pouco mais. Elis Regina, poucos meses depois, participava do “Jovem Guarda” comemorativo do aniversário de Roberto Carlos. Depois, em mais um sinal de rendição, gravaria “Golden Slumbers”, dos Beatles, um dos símbolos da “invasão estrangeira.” E guitarras tornaram-se lugar comum nos seus discos e shows seguintes.
Chico Buarque, um dos grandes nomes da música com conteúdo crítico, saltou fora da armadilha. Declarou que não tinha nada contra a guitarra elétrica, assim como não tinha contra o tamborim. E eximiu-se de participar. Algum tempo depois, disse que o importante era ter Os Mutantes e Martinho da Vila no mesmo palco.
Caetano Veloso nunca se conformou com a participação de Gilberto Gil. Juntos já tramavam o movimento da Tropicália e aquela passeata era a antítese do que pensavam. Assistiu, desolado, de uma janela a passeata passar, e companhia de Nara Leão, que comparou a passeata às realizadas pelos fascistas, e arrematou: “Tenho medo dessas coisas.”
Jair Rodrigues, Elis Regina, Gilberto Gil e Edu Lobo na “Passeata contra a guitarra elétrica.”